Se há uma virtude que é comumente associada aos povos celtas desde os primórdios, esta é a hospitalidade. Não é a única, claro. Coragem, honra e muitas outras são geralmente relacionadas aos celtas, mas a hospitalidade sempre recebe um lugar de destaque entre elas. A hospitalidade céltica era reconhecida até mesmo pelos romanos que, em momentos de paz, descreviam os celtas como um povo curioso e ávido ao comércio e intercâmbio, bem como apreciador de boa comida e bebida, reconhecido pelos suntuosos banquetes e festejos, bem como pela generosidade (obviamente, nem tudo eram flores, tanto pelo fato de que nem todos os líderes e anfitriões celtas não serem iguais, quanto por nem sempre o contato entre eles e os romanos se dar em momentos de paz).
A hospitalidade era algo tão relevante para a sociedade céltica, que chegava a ser parte de seu próprio éthos social. Muito mais do que mera cordialidade ou educação, era uma forma de trabalhar as relações sociais com segurança, concedendo a um visitante uma honra devida, e esperando a mesma honra em troca. É por isso que ela era, necessariamente, uma via de mão dupla, uma vez que o visitante deveria respeitar o anfitrião da mesma forma que era recebido por ele. Hóspedes inconvenientes, inclusive, são fontes de várias lendas e contos dentro da tradição céltica, inclusive sendo um dos motivos para a invasão do Ulster pela rainha Meadbh, quando seus emissários, que haviam sido bem-sucedidos na negociação pelo touro Donn Cualnge, ofendem ao seu anfitrião, sugerindo que, se o bovino não fosse entregue de bom-grado, haveria de ser tomado pela força, a justificativa final para o maior épico irlandês, o Táin Bó Cualnge. Graças à hospitalidade, era possível que um viajante tivesse um lugar para ser abrigado, uma canção para seus ouvidos e um prato de comida, mesmo em um período tão violento da história.
É óbvio que a sociedade céltica, como praticamente todas as sociedades indo-europeias antigas, era profundamente estratificada (embora permitisse muito mais mobilidade social do que as sociedades romana ou védica, por exemplo), e portanto a hospitalidade devida a alguém poderia variar dependendo da sua classe social. Um rei obviamente esperaria maiores honras do que um andarilho, mas ainda assim, praticamente todos aqueles que poderiam ser considerados homens livres podiam esperar receber algum tipo de hospitalidade, pois o anfitrião poderia até mesmo receber uma mácula em sua honra caso a negasse. Obviamente, a hospitalidade não precisaria ser dada a um criminoso ou alguém considerado como estando além das margens da sociedade. Além disso, não se esperava que a hospitalidade de uma pessoa excedesse ou esgotasse seus recursos, estando sempre dentro dos limites da sua capacidade.
Portanto, se a hospitalidade devida era algo que podia variar a partir das condições sociais do anfitrião, era esperado também uma hospitalidade condizente daqueles com mais recursos. A generosidade dos chefes celtas é citada desde o relato romano sobre o gaulês Louernius, passando pelas lendas sobre os reis e heróis britânicos e irlandeses. Mas em diversas destes contos encontramos justamente a figura do hóspede que se aproveita da situação, por vezes até mesmo com razões justificadas, como quando Pwyll aprisiona Gwawl em seu saco mágico para resgatar Rhiannon, uma vez que o próprio Gwawl havia se aproveitado de sua hospitalidade para roubar-lhe a esposa. Neste caso específico das lendas britânicas, o nobre devia conceder ao convidado uma dádiva, que não lhe seria negada em nenhuma circunstância, ao custo de manchas sobre sua honra. É por isso que, em muitas das lendas arthurianas, quando um convidado pede uma dádiva ao Rei Arthur, ele diz que a concederá, “desde que esta não seja minha esposa, minha espada, meu escudo, meu cavalo, etc…” Estabelecer os limites para a própria hospitalidade, desde que feito de forma clara e honesta, era uma demonstração de bom senso entre um povo que valorizava tanto a honra e a palavra empenhada.
A hospitalidade era levada tão a sério pelos celtas ao ponto de eles acreditarem que até mesmo os seres do Outro Mundo estarem sujeitos a suas regras. Por isso encontramos as lendas de diversos viajantes que chegam ao Outro Mundo e são recebidos com grande hospitalidade pelos seus habitantes, principalmente nas Imramma e Echtraí irlandesas (embora não ocorresse em 100% dos casos, claro). Em alguns casos, até mesmo visitantes potencialmente hostis eram recebidos pelos habitantes de mundo-além-do-mundo, como foi o caso da lenda de São Collen sendo recebido com um suntuoso festim por Gwynn ap Nudd. E esta hospitalidade também poderia ocorrer no sentido contrário, como no Samhain, quando os mortos e ancestrais atravessavam o véu que separa os mundos e recebiam a devida hospitalidade de suas famílias nos banquetes.
O ramo gaélico da tradição é, como sempre, a nossa fonte com a maior quantidade de informações sobre a prática da hospitalidade, tanto na mitologia e folclore quanto na legislação dos antigos Breitheamh irlandeses, inclusive detalhando as categorias de hospitalidade que alguém poderia pleitear e receber, bem como as penalidades que seriam sofridas por quem as negasse. Mas a hospitalidade não era apenas uma questão legal, mas social e cultural, fazendo parte das lendas e tradições mesmo quando a lei não era envolvida. Os banquetes eram ofertados aos mortos em Samhain não porque os ancestrais poderiam apelar às leis, mas por simplesmente ser o correto a se fazer. O mesmo ocorria para as várias instâncias em que as tradições gaélicas e britânicas citam em que a hospitalidade era ofertada até mesmo a membros de povos inimigos, arriscando-se a ter essa confiança traída (e muitas vezes era exatamente o que acontecia). Tudo indica que esta virtude era poderosamente entranhada na consciência dos povos celtas.
Mesmo o Ciclo Mitológico das tradições gaélicas falam sobre a prática da hospitalidade e suas implicações (uma vez mais evidenciando que havia a crença de que nem mesmo os deuses estavam imunes às suas consequências). Dois casos parecem ser de suma importância para o seu entendimento. O primeiro envolve o período em que o Dagda, talvez a mais titânica divindade gaélica (junto à Morrighan) foi rebaixado à posição de cavador de valas pelo rei Bréas, o Belo. O Bom Deus dividia a sua função com um homem chamado Cridenbel, que sempre pedia por uma porção de sua comida, levando a maior parte com sua enorme mordida. A conselho de Oéngus mac Índ Òg, seu filho, o Dagda coloca um conjunto de três moedas dentro de sua comida, o que faz com que Cridenbel acabe engasgando e morrendo. Embora existam diversas implicações e interpretações sobre o significado desse episódio (desde uma metáfora para um período em que a comida era escassa, até a sugestão de que refletiria uma prática para aplacar espíritos que se alimentavam da colheita), o que nos interessa neste momento é: o Dagda não poderia recusar a comida a Cridenbel, por sua honra. Mas Cridenbel também não poderia abusar da “hospitalidade” (talvez o termo que caiba melhor aqui é “generosidade”) do seu anfitrião, e o fato de não respeitá-lo tornou válida a atitude sugerida por Oéngus. A hospitalidade (e a generosidade) é uma via de mão-dupla, devo repetir aqui.
O segundo é justamente aquele que explica o destronar de Bréas. Nele, o poeta e satirista Cairbre busca a hospitalidade na casa de Bréas, mas acaba por ser abrigado em uma caserna escura, com apenas água suja para beber e bolos secos para comer. Como um poeta, ele poderia esperar um tratamento digno do rei, mas não foi o que recebeu, por isso, antes de partir pela manhã, ele se voltou a Bréas e pronunciou a seguinte maldição:
Sem comida prontamente em um prato,
Sem leite de vaca do qual um bezerro cresce,
Sem a habitação de um homem depois que a escuridão chega,
Sem honra pela companhia de contadores de histórias – que seja a sorte de Bréas.
Não há mais prosperidade para Bréas.
E com isso, Bréas foi desonrado e destronado. Em algumas versões é dito que o pode mágico da sátira de Cairbre foi tamanho que o rosto de Bréas se encheu de pústulas (e por isso ele foi destronado, pois, a exemplo do nobre Nuada, a lei céltica dizia que apenas aqueles plenos de corpo poderiam ser reis), enquanto outras sugerem que apenas a sátira (e o retorno de Nuada) teria sido o bastante, pois um rei pouco hospitaleiro já seria uma enorme desonra para as Tuatha Dé Danann.
Os tratados de sabedoria medieval, particularmente os gaélicos, também nos falam bastante sobre a prática da hospitalidade, mostrando o quão grande era a sua importância, mesmo após a chegada do cristianismo às terras celtas. Muitos dos conselhos são simples e diretos, mas que são bastante claros na defesa da hospitalidade. Por exemplo, as As Máximas dos Fianna dizem:
Filho de Luga, se o ofício do guerreiro for teu objetivo, seja comedido na casa de um grande homem, seja sério em uma passagem estreita.
Distribui tua carne livremente; não tenha nenhum avarento como teu parente.
Seja mais apto a dar do que a negar, e persiga a gentileza, oh filho de Luga.
A primeira citação é bastante clara ao sugerir que se deve respeitar ao seu anfitrião. Já as outras duas falam diretamente sobre a generosidade para com aqueles que o buscam. Já O Testamento de Morann mac Main nos diz:
(…)
A falta de hospitalidade se curva à hospitalidade,
Avareza se curva à generosidade,
Mesquinharia se curva à magnanimidade,
Impetuosidade se curva à compostura,
Turbulência se curva à submissão,
Um usurpador se curva a um verdadeiro nobre,
Conflito se curva à paz,
Falsidade se curva à verdade.
Diga-lhe, que ele seja misericordioso, justo, imparcial, consciencioso, firme, generoso, hospitaleiro, honrado, estável, beneficente, capaz, honesto, loquaz, estável, de julgamentos verdadeiros.
Por último, As Instruções do Rei Cormac mac Aírt citam:
“Oh, Cormac, neto de Conn,” disse Carbery, “quais são os deveres de um chefe e de uma cervejaria?”
“Não é difícil dizer,” disse Cormac
Bom comportamento rodeia um bom chefe
Luz para lampiões
Dedicar-se à companhia
Uma organização adequada das cadeiras,
Liberdade aos serventes,
Uma mão hábil ao servir,
Serviço atento,
Musica em moderação,
Pouca contação de historias,
Uma expressão alegre,
Boas vindas aos convidados,
Silencio durante recitais,
Coros harmoniosos.”
Provavelmente já sabemos o bastante sobre a prática e valor da hospitalidade dentro da cultura céltica tradicional. Há muito mais, é claro. As leis dos Breitheamh, as lendas e contos, as Tríades, e várias outras fontes vão adicionar mais e mais detalhes sobre como essa hospitalidade se manifestava dentro do contexto social céltico clássico. Aqui, contudo, já temos alguns pontos de partida: sabemos o quão importante a hospitalidade (que também é uma forma de generosidade) era importante para os povos célticos; sabemos que ela não era uma via de mão única, mas sim de mão dupla, e que respeitar seus anfitriões era tão importante quanto receber a hospitalidade de alguém; sabemos que a hospitalidade que se pode oferecer nunca deve ultrapassar nossas próprias capacidades; e principalmente, sabemos que a hospitalidade poderia se estender até mesmo a aqueles que não pertencem aos círculos físicos do mundo. O que nos leva à questão: o quão relevante é praticar a hospitalidade nos nossos dias, dentro de um contexto pagão céltico?
É óbvio que não vivemos mais em um mundo onde as portas de nossas casas possam simplesmente ser abertas a todos os que pedem. É óbvio também que não vivemos mais em um mundo onde as sociedades são estratificadas a ponto de tratarmos pessoas de diferentes formas a partir de sua posição social. E por último, é óbvio que o mundo atual impõe limites a tudo o que pode ser feito por aqueles que não conhecemos. Mas ainda assim, a hospitalidade é uma virtude relevante dentro do paganismo céltico contemporâneo, se não em sua versão literal, ao menos nos sentidos filosófico/comunitário e metafísico/espiritual.
Começando pelo metafísico/espiritual, falamos claramente ao longo do artigo que a hospitalidade não era algo devido apenas aos seres humanos, mas também a seres do Outro Mundo. As diversas lendas de jornadas ao Outro Mundo mostram que é possível receber a hospitalidade daqueles que o habitam, e as tradições que falam dos seres do outro lado que passam para o nosso mundo também evidenciam que podemos oferecer a hospitalidade a eles. O que fazemos em nossos ritos devocionais (celebrações sazonais e cerimônias de devoção) é basicamente ofertar a nossa hospitalidade aos seres do Outro Mundo, convidando-os aos nossos altares para que ali sejam honrados. Ali, nós somos os anfitriões, e eles são nossos hóspedes, devendo ser honrados de acordo. Não estamos falando exclusivamente de oferendas físicas (embora elas seja, de longe, a forma mais comum), mas também de honrá-los de diversas outras formas, com a nossa devoção, nosso ambiente, nossas histórias, nossas poesias e canções. Mesmo que o contato com os seres do Outro Mundo seja por um momento restrito, ainda assim somos seus anfitriões naquele espaço de tempo e devemos agir como tal.
Há também a hospitalidade também no sentido comunitário. Todos fazemos parte de uma comunidade neste planeta. Na verdade, somos parte de comunidades dentro de comunidades dentro de comunidades. Como lidamos com os membros de cada uma dessas comunidades? Como dissemos, já não vivemos em um mundo em que podemos abrir nossas portas para andarilhos, e hoje nosso espaço pessoal e privado é algo muito mais preservado do que era para os povos tradicionais. Mas e quando a questão não envolve exatamente a moradia? Como recebemos as pessoas em nossas comunidades, nossas escolas, nossos empregos, nossos meios sociais? É claro que não é algo semelhante ao que ocorria na Antiguidade, mas mesmo nela, havia diferenças de tratamento e limites impostos que não impediam (no geral, sabendo que havia exceções) a prática da hospitalidade. Que limites impomos ao receber as pessoas em nossas comunidades? Por que confiamos mais em algumas pessoas do que outras? E principalmente, isso impede que os recebamos de forma hospitaleira em nosso meio? E falando especificamente de nossa comunidade espiritual, como recebemos as pessoas que nos buscam? O quão bem-vindas elas são aos nossos ritos, celebrações, estudos, ordens, sendas e clareiras? Como recebemos as pessoas que entram em nossas vidas? Quais limites estabelecemos e o quão hospitaleiros somos? E como lidamos com aqueles que ultrapassam os limites da nossa generosidade?
A hospitalidade é, definifivamente, uma virtude complexa de se adaptar ao mundo atual. Talvez ela seja realmente um resquício de tempos antigos, mas ela ainda tem o seu valor. Através dela, podemos perceber os laços que formamos, inclusive com os seres do Outro Mundo. Através dela, fortalecemos nossas ligações de amizade e companheirismo, tornando nossas interações mais espontâneas e reais. Através da hospitalidade, honramos os ensinamentos dos nossos Ancestrais de Tradição, e através destas lições que nos legaram, aprendemos a honrar ao outro, e a receber o respeito e sua honra em troca. Mesmo que seja essa honra a bênção dos Deuses altíssimos e da Divina Inspiração, ou apenas uma conversa alegre e com risadas, acompanhada de uma bebida em um pub em uma tarde de final de semana, a hospitalidade já terá valido a pena por isso.