Nascer. Crescer. Viver. Morrer. Esse ciclo natural da vida é bem conhecido por todos. Todos passaremos por ele em algum grau e nenhum de nós escapará do seu último estágio. O que ocorre após ele é o grande mistério da humanidade. Há algo no além-vida? Creio que todos os que lerão esse artigo acreditam que sim, afinal, estou falando principalmente a um grupo de pessoas espiritualizadas. Mas no mar de crenças que existem para a humanidade a esse respeito, há alguma correta? Da crença abraâmica na existência do Inferno e no Paraíso dos escolhidos até a ideia budista e hinduísta na evolução da alma até a libertação do ciclo de encarnações, o mundo possui uma quantidade enorme de ideias sobre o que ocorre com o nosso “eu espiritual” no pós-morte. E alguma delas está mais correta que a outra? Não podemos afirmar com certeza, mas talvez cada uma delas esteja correta de acordo com os ditames de sua própria crença. Iremos nos aprofundar nisso ao longo do artigo, mas por enquanto basta dizer que toda espiritualidade vem carregada com um conjunto de valores éticos, morais e filosóficos que determinam o tipo de pessoa que o devoto deve ser. Se o devoto estiver fiel aos valores de sua espiritualidade, ele provavelmente atingirá o caminho almejado.
Espiritualidades (ou religiões, como preferirem) não são imunes a diferenças de interpretação, contudo; usando o cristianismo como exemplo, ainda nos seus estágios iniciais de conversão na Grã-Bretanha, um dos seus missionários, Pelágio, pregava uma forma de sua religião que não seria facilmente reconhecida por nenhuma das entidades representantes da fé cristã hoje. De acordo com Pelágio, o ser humano (e toda a Criação) havia sido criado por intermédio do amor de Deus, e portanto não havia como ser inerentemente mal (embora pudesse ser corrompido ao longo de sua vida); assim, se o amor de Deus era a fonte da existência do ser humano (e portanto, de cada homem e mulher na Criação), não fazia sentido sermos considerados culpados por um pecado original no qual não tínhamos participação. Como manifestações do amor divino, seríamos todos inerentemente bons, mas com a possibilidade de sermos corrompidos pelos vícios do mundo e pelos maus hábitos, por isso deveríamos nos ater à boa obra da Criação, vivendo em amor, bondade, generosidade, caridade e demais valores que costumam ser atribuídos à religião cristã, mas que são tão pouco praticados pelos seus. Com isso (e com a fé em Cristo), o ser humano poderia ascender ao Reino dos Céus sem a necessidade de intermediários ou uma autoridade eclesiástica, pois o próprio Messias haveria expulsado os “mercadores da fé” de seu templo e dito que somente através dele (e do seu exemplo) se poderia chegar a Deus. Pelágio era um profundo entendedor da doutrina cristã e bastante fiel (ainda que seus detratores em Roma o acusassem de pregar valores druídicos), mas sua ideia de negar a necessidade da autoridade da Igreja fez com que fosse perseguido e considerado herético. Essa é uma das razões para se conhecer os valores de sua própria crença, uma vez que as diferentes interpretações sobre a mesma crença podem acabar distorcendo a sua percepção sobre a mesma (resumindo o caso cristão, a colocar mais fé e investimento na instituição do que na “boa obra” que o messias ensinou).
Mas nosso assunto aqui não é o cristianismo, e essa explicação sobre o Pelagianismo foi apenas um exemplo de como é possível confundir um caminho espiritual através de visões divergentes de seus pregadores. Por isso, deve ser dito aqui que nada escrito nesse artigo tem por objetivo de ser verdade absoluta, mas apenas uma interpretação baseada nas diversas visões que existem a respeito da crença céltica e druídica a respeito do pós-morte e que, curiosamente, não nega nenhuma delas, mas as integra. A grande árvore cuja raiz é a crença céltica original possui muitos ramos que estão em oposição por tanto tempo que já não percebem o quanto suas crenças não precisam negar as outras, uma vez que todas são parte de um único aspecto de manifestação espiritual. Negar uma das visões gera uma enorme possibilidade de negar a todas, inclusive a que se defende quando nega a outra. Nós nos acostumamos a ter uma ideia de “espiritualidade incompleta”, como se os antigos fossem incapazes de pensamentos mais complexos e elevados; também nos acostumamos a aceitar simplificações e a ignorar evidências que neguem nossa visão, muitas vezes e principalmente ideológicas. Mas e se colocássemos todas essas visões na mesa, com todas as suas possibilidades, e analisássemos uma a uma? E se encontrássemos pontos de ligação entre elas? Alguns podem dizer que esses pontos de ligação são frágeis. Ora, mas o que sabemos sobre o mundo céltico antigo que não é frágil? Quantas vezes as visões que temos sobre ele não foram alteradas por novas evidências “frágeis”? Então vamos dar uma chance aos nossos preconceitos básicos e às nossas visões ideológicas aos quais somos tão apegados e tentar entender o que realmente sabemos sobre a crença céltica do pós-morte, usando as diferentes visões não em oposição, mas como diferentes peças necessárias para a construção de um quebra-cabeças, que nem sempre parecerá bem encaixado, mas que pode nos trazer ao menos um início de resposta a uma das mais intrigantes questões do meio druídico: existe uma ideia de “evolução da alma” no Druidismo?
E que visões são essas? Basicamente, vamos buscar o entendimento do pensamento céltico/druídico através das suas diversas manifestações, antigas e modernas. Desde os registros clássicos, que nos falam sobre a “doutrina Pitagórica” dos Druidas e da crença da transmigração e imortalidade da alma, passando pelos mitos insulares, que contam lendas sobre Avalon, a Casa de Donn e as Imramma, a elaborada doutrina do Druidismo do Renascimento, as crenças druídicas contemporâneas e do Reconstrucionismo Celta. Nenhuma delas será deixada de lado, uma vez que todas fazem parte de um único conjunto de espiritualidade, que foram colocadas umas contra as outras por tempo o suficiente. Se descobrirmos através dessa análise que alguma delas é completamente destoante, assim a definiremos, mas nunca apenas por pertencer a este ou aquele movimento. Dito isso, podemos começar.
O Pós-Morte Indo-Europeu
Início essa parte do artigo com uma posição polêmica (como não poderia deixar de ser). Muitos defensores daquela que é chamada hoje de “Ideologia Indo-Europeia” tem por hábito defender que o principal objetivo da vida é se reunir com os Ancestrais no pós-morte. De acordo com eles, os ideais indo-europeus não aceitariam de forma alguma a ideia de “evolução” da alma, sendo que o destino dos homens só poderia ir em duas direções: banquetear-se com os Ancestrais ou o esquecimento (por vezes também trocado por algum destino incerto). Essa doutrina também nega completamente a ideia de reencarnação ou qualquer forma de transmigração da alma. Porém, observando diversas tradições indo-europeias, eu não consigo deixar de acreditar que esse é um recorte pobre e parcial de uma visão muito mais complexa e que abarca tudo aquilo que essa ideia nega.
Iniciemos com a Grécia, que sempre deveria ser o ponto inicial de busca sobre o que podemos chamar de “indo-europeu”. Inicialmente, a visão helênica parece concordar com a Ideologia Indo-Europeia: os mortos (ou suas “almas”) continuam a existir enquanto forem lembrados pelos vivos, o que nos leva à ideia básica de culto aos Ancestrais. O Hades (o nome do reino do Submundo se confunde com o de seu regente) é descrito inicialmente (por Homero, principalmente) como um local assustador do qual Aquiles diz ser preferível “ser um escravo sem-terras no mundo dos vivos do que um rei no Submundo”. Essa é uma visão pouco animadora, mas também muito vaga sobre o que ocorre com almas dos mortos. Porém, ao mesmo tempo em que Homero nos traz essa visão pessimista, seu contemporâneo, Hesíodo,nos ensinava que existiam diversos planos dentro do Hades, e que aqueles que vivessem uma boa vida e fossem bem lembrados pelos vivos poderiam desfrutar dos prazeres do Elísio, enquanto os terríveis sofreriam no Tártaro (e os que tivessem seus nomes esquecidos poderiam vagar para sempre na escuridão do Hades); também encontramos ali as Campinas de Asphodel, onde as almas que não atingiram a excelência no bem ou no mal poderia encontrar continuidade, junto aos seus entes queridos. Somente no século IV a.C. encontramos descrições um pouco mais completas sobre o assunto, onde entendemos que as almas podem ser recompensadas pelo seu papel (ou por suas dores) na Terra (mas a ideia de que isso duraria apenas enquanto sua lembrança vivesse continuava). Nos diálogos de Platão (particularmente, o “Phaedo”), Sócrates também descreve os vários níveis do Hades na consciência helênica e o fato de que as almas que vivessem boas vidas seriam recompensadas, e que por isso era importante que os gregos se lembrassem de seus Ancestrais como exemplares (quer tenham sido ou não), para que seu lugar no Elísio fosse mantido; isso era parte de um conceito grego conhecido como Eusebia (a tradução seria algo como “piedade”, ainda que não seja totalmente adequada), o dever do homem para com seus Ancestrais (em suma, para com sua família), que era garantir-lhes um bom lugar no Outro Mundo.
Haveria alguma alternativa a esses destinos? Pitágoras (do qual falaremos mais na próxima parte desse artigo, uma vez que sua doutrina costuma ser associada aos Druidas), Pherecydes de Siro e Platão advogaram pela imortalidade da alma, bem como para a sua transmigração para outros corpos. Não se sabe se esse pensamento seria uma interpretação nativa da própria espiritualidade helênica, ou se teria sido baseado nos ensinamentos do Orfismo, que os gregos emprestaram dos Trácios (outro grupo de origem indo-europeia). No pensamento helênico, essa visão surge de duas formas distintas: a Reencarnação, que é a ideia de que o ser humano continua a existir após sua morte e que vem a habitar um novo corpo posteriormente; e a Metempsicose, onde o ser continua existir após sua morte, mas seu renascimento não precisa ser exatamente em um corpo humano. Muitos acreditam que o conceito foi emprestado dos trácios pelos gregos, porém a existência de ideias semelhantes em outros grupos indo-europeus terminaria por evidenciar que essa crença poderia ser sim uma interpretação válida dentro dos conceitos primordiais dessa espiritualidade.
Um curto parágrafo pode ser feito sobre a visão romana do pós-morte, uma vez que ela foi, em grande parte, emprestada da grega, mas que nos traz algumas informações complementares interessantes. De acordo com Virgílio (na Eneida), os mortos que não recebiam ritos fúnebres adequados eram forçados a aguardar na beira do Rio Styx até que fossem devidamente enterrados. Descendo o rio, ele conhece os locais onde aqueles que tinham convicções errôneas “viviam”: os Campos de Tristeza onde residiam os suicidas, os sombrios e os guerreiros (o que pode explicar, em parte, o sofrimento de Aquiles descrito por Homero), o Tártaro onde residiriam os Titãs e outros poderosos seres não-humanos (possivelmente entidades ctônicas), o Palácio de Plutão, os Campos Elíseos (aqui descritos como a morada dos grandes heróis e descendentes dos deuses) e finalmente, Lethe, o Rio do Esquecimento. Há algumas diferenças essenciais entre a visão grega e a romana, mas ainda assim são nitidamente baseadas em uma ideia comum (talvez indo-europeia) de que não há apenas um destino para as almas dos mortos. Os ideais romanos nos citam ainda uma possibilidade na crença na independência da alma do corpo, como podemos inferir nos textos Cícero, que citam possíveis experiências de viagens para fora do receptáculo de carne, e o próprio Virgílio trabalha a crença na reencarnação na Eneida.Até aqui temos: a) um Submundo como o local de destino dos mortos; b) a existência de diversos planos dentro deste Submundo, onde diferentes categorias de mortos são alocados; c) a necessidade da reverência pelos mortos Ancestrais, que se beneficiam da lembrança dos vivos; d) a existência de um local de bem-aventurança para aqueles que vivessem boas vidas, bem como heróis e pessoas de origem divina; e) a existência de um local temível para aqueles que não tivessem vidas dignas, inclusive suicidas e violentos; f) um local de castigo para os terríveis, que são colocados junto à possíveis entidades primordiais e ctônicas; g) a necessidade de que os mortos recebessem ritos funerários apropriados para que seguissem o seu caminho; h) a possibilidade de imortalidade da alma, seja no Elísio, no Tártaro ou vagando pelo Hades; i) a possibilidade da existência de uma crença na reencarnação e transmigração da alma; j) a passagem pelo Rio do Esquecimento (Lethe) para retornar ao mundo dos vivos após visitar o mundo dos mortos.
O último ramo indo-europeu ocidental que nos interessa aqui (com exceção do céltico, claro, que ocupará bem mais do nosso tempo) é o nórdico, uma vez que sabemos muito pouco sobre os outros (como o báltico e o eslavo), e muito do que sabemos sobre eles é baseado em interpretações comparadas aos ramos mais conhecidos. A concepção cosmológica nórdica talvez seja a mais complexa dentre os ramos ocidentais do indo-europeu, com nove mundos que espalham ao longo da árvore cósmica, Yggdrasil. Ainda que não saibamos exatamente o quanto da cosmovisão nórdica preservou da sua origem germânica primitiva, ainda assim ela é uma fonte rica de informações sobre como o pós-morte pode ser visto. Nela encontramos diversos destinos para os mortos, assim como na grega. O mais conhecido e valorizado de todos é o Valhalla, que era onde os guerreiros caídos em batalha seriam recebidos por Odin, onde festejariam e lutariam até o Ragnarok. A cultura escandinava era muito mais voltada ao valor dos guerreiros, por isso o seu destino mais aguardado estava reservado para aqueles que caíam de espada em punho, enquanto entre os gregos esse destino estava reservado para aqueles que tinham vivido boas vidas, feito boas obras, feito diferenças positivas para a sociedade (ou sido grandes heróis, para que não se pense que o Elísio helênico era fechado para aqueles com tendências guerreiras), mas em ambos os casos, eram o destino final daqueles que vivessem vidas excepcionais (cada qual com os valores de sua própria sociedade). Outro destino para os guerreiros (aliás, para a primeira metade dos guerreiros mortos em batalha) era o Fólkvangr, onde se eles se juntariam sob a liderança de Frejya. Porém a sociedade escandinava não era formada apenas por guerreiros, e o destino daqueles que escolhiam não pegar em armas parecia muito mais próximo dos seus equivalentes indo-europeus do Mediterrâneo: o Hel (a mesma palavra para “inferno” das línguas germânicas) era o destino da maioria das pessoas comuns, que se reuniam com seus Ancestrais. Apesar de alguns aspectos bastante sombrios (como trabalhar na construção do navio Naglfar com as unhas dos mortos), o Hel se parece muito mais com o Asphodel grego do que com o Tártaro. O nível mais baixo de Hel, contudo, reservado para os vis e aqueles que quebram juramentos, conserva características de reino punitivo e é chamado de Niflhel. Porém, ao que tudo indica, a crença nórdica também parecia levar em consideração a reencarnação, como podemos ler na Edda Poética: “Sigrun logo morreu de tristeza e dor. Nos tempos antigos se acreditava que as pessoas nasciam novamente, mas isso hoje é considerado tolice de velhas viúvas. De Helgi e Sigrun é dito que eles nasceram novamente; ele se tornou Helgi Haddingjaskati e ela Kara, a filha de Halfdan, como é dito na Canção de Kara, e ela foi uma Valquíria”. Outro caso curioso é o do rei cristão (e santo) Olaf da Noruega, que era visto como a reencarnação do rei pagão também chamado Olaf. Com o que podemos aprender sobre o mito nórdico, acabamos encontrando basicamente os mesmos aspectos que os mitos clássicos, mas com algumas diferenças importantes: a primeira é que pessoas com as mesmas atitudes na vida ainda podem atingir destinos diferentes, dependendo do grau de excelência destacados (os primeiros mortos em batalha vão para Fólkvangr, a segunda metade para Valhalla); o segundo aspecto é que o destino de uma pessoa está profundamente ligado aos valores de seu próprio povo. Embora os nórdicos fossem tão indo-europeus em origem quanto gregos e romanos, séculos de separação tornaram seus valores um tanto distintos. Assim, se espiritualmente encontramos profundos paralelos, as diferenças filosóficas são grandes, e se, para os romanos, os guerreiros (que não fossem grandes heróis) acabariam indo para os Campos da Tristeza, para os nórdicos o seu caminho poderia ser Fólkvangr ou Valhalla (desde que estivessem lutando pelo “lado certo”, de acordo com os valores de seu povo). A presença da reencarnação é marcante no mundo nórdico também, mas não é estranho quando sabemos que os antigos anglo-saxões (também germânicos) acreditavam que o corpo era apenas uma “roupa de carne” e que o espírito poderia vestir outras. Ainda é especulado que os antigos escandinavos acreditassem que a reencarnação poderia vir a ocorrer dentro de suas linhagens familiares.
A análise da doutrina hindu é ainda mais complexa e polêmica. Ela é indo-europeia em origem, mas que adquiriu muitas influências orientais (diferente das outras tratadas aqui, que se desenvolveram no ocidente), muito provavelmente de origem sino-tibetanas, mas também possivelmente dravídicas. Por essa razão, muitos estudiosos do ramo indo-europeu preferem ignorar a tradição indiana, mas ao fazer isso, ignoram a ligação direta que esse ramo possui com o ramo indo-iraniano, talvez um dos mais arcaicos do indo-europeu. Aqui o analisaremos para descobrir se há possíveis semelhanças entre o pensamento indo-europeu ocidental e o ramo orienta. Mas outro problema também se apresenta: a tradição indiana é, de longe, a mais bem preservada dentre todos os ramos indo-europeus (até mais que a grega), porém é profundamente fragmentada, com diversos ramos próprios espalhados por todo o subcontinente. O termo “hinduísmo” é um enorme guarda-chuva que abrange centenas de tradições espirituais diferentes, muitas vezes contraditórias, sob sua sombra. Assim, teremos que nos ater apenas a algumas crenças padrões (que mesmo assim não são universais) do “hinduísmo”, uma vez que debater sobre todos os ramos nascidos da Índia Védica nos parece algo completamente fora do escopo desse simples artigo. Diversas ordens druídicas e estudos indo-europeus fazem paralelos exclusivamente entre o ramo védico e o céltico, porém esse não é o nosso objetivo aqui, portanto esperamos que os pontos escolhidos sejam o bastante para nos fornecer um panorama básico sobre essa questão.
O Bhagavad Gita nos diz (através das páginas do Senhor Krishna) que a alma (que é imutável e indestrutível) troca de corpo assim como o homem troca de roupas, uma frase absolutamente semelhante ao que encontramos nas descrições anglo-saxãs. Para os hindus, a alma eterna passa por diversos ciclos de vida, morte e renascimento, até atingir o Mukti, quando ela retorna a unidade suprema com o Deus Supremo. Antes de atingir esse estágio (Moksha, ou “salvação”), a alma viverá e morrerá muitas vezes e, a cada morte, será levado pelos emissários de Yama (o deus da morte); ainda que não existam paralelos exatos, parece haver um eco disso na ideia de que as Valquírias coletam as almas dos mortos para Odin, ou na ideia de que as aves carniceiras levavam as almas dos mortos ao Outro Mundo, presente na Irlanda e na Celtibéria. Outra fonte (o Garuda Parana) nos diz que a alma (Atman) anda por um longo túnel escuro em direção ao sul, e por isso é tradicional manter uma lâmpada a óleo ao lado do corpo, com a intenção de iluminar o caminho. Os hindus possuem uma crença bem definida sobre o destino das almas no pós-morte. A crença no Karma pesa as ações das pessoas ao longo da vida (de acordo com os princípios do Dharma e sua posição perante a sociedade), podendo gerar “Karma ruim” (pelo qual a pessoa será punida em Naraka) ou “Karma bom” (pelo qual a pessoa será recompensada em Svarga); nem a punição, nem a recompensa são eternas, contudo, e uma vez que tenham se encerrado, as almas voltam a esse mundo em uma forma apropriada ao que atingiu na vida anterior (podendo voltar como formas de vida “inferiores” para os que tem Karma negativo, ou “superiores”, em caso contrário). Esse resumo (muito, mas muito resumido mesmo) da crença hindu mostra o quão ela parece divergir, mas ao mesmo tempo, confirmar padrões indo-europeus. Os únicos pontos que ainda nos parecem inconsistentes com os outros ramos indo-europeus são a ideia de um ciclo eterno de reencarnações, a possibilidade deixá-lo para atingir uma unidade divina com o Deus Supremo e uma definição tão clara como o Karma; porém, mesmo essas crenças não são completamente discrepantes com os outros ramos da tradição. Elas não negam nenhum dos aspectos das crenças dos outros ramos, podendo estar ausentes nos mesmos, não terem se desenvolvido, terem sido esquecidas, ou mesmo existirem de alguma forma inconsciente (portanto, sem registros escritos).
No final, apesar de diversas, as tradições indo-europeias confirmam umas às outras nos seus aspectos mais básicos. O fato de que cada ramo da própria tradição ter suas próprias divisões é algo que dificulta, uma vez que uma dessas divisões pode confirmar a posição de uma outra, mas negar uma terceira. Mas a espiritualidade se desenvolve de formas diferentes em ambientes diferentes, então não há como definir como o que seria plenamente indo-europeu e o que seria inovação local. Mas podemos encontrar alguns pontos em comum a todos os ramos, bem como outros que poderiam ser válidos, mas que não temos a certeza de terem existido para todos:
- O Submundo como o local de destino dos mortos (Hades, Hel, o Túnel Escuro seguido pelo Atman)
- A existência de diversos planos dentro deste Outro Mundo, onde diferentes categorias de mortos são alocados.
- A existência de um local de bem-aventurança para aqueles que tenham vivido boas vidas, bem de um local temível para aqueles que não tivessem vidas dignas.
- A ideia da imortalidade da alma, que é independente do corpo de carne.
- A possibilidade da reencarnação ou transmigração da alma.
Outros pontos confirmam partes específicas de outras linhas, mas não de todas. Mas curiosamente, elas poderiam completar umas às outras de forma clara, se colocadas lado-a-lado. Obviamente, essa metodologia nada teria de científico, mas seria apenas uma enorme especulação. Assim, ficamos como pontos em comum apenas os cinco acima, mas nos permitiremos uma certa liberdade especulativa abaixo no conjunto abaixo (que não tem nenhuma pretensão de representar algum tipo de verdade absoluta).
A alma é imortal e abandona sua roupa de carne no momento da morte. Ela pode caminhar para o Submundo, ou ser buscada pelos emissários dos deuses dos mortos, como as valquírias ou os servos de Yama. No mundo dos vivos, os ritos fúnebres devem ser levados em consideração, para que a alma não fique vagando a esmo pelo limiar entre vida e morte. Seu local de descanso pode ser um reino do Submundo junto aos Ancestrais, ou um local de punição para os vis, ou mesmo um recanto abençoado como recompensa para as almas elevadas (de acordo com as visões de sua própria espiritualidade, seja sendo uma pessoa que pratica boas obras, um grande sábio ou guerreiro). Assim, não há um único destino para os homens, e pode-se chegar a um destino elevado, que poucos conseguem alcançar. Mas nenhuma punição ou recompensa é eterno, o que nos faz retornar ao mundo vivo uma vez mais. A forma em que retornamos não precisa ser necessariamente humana, mas é comum que as almas elevadas também retornem para guiar novamente os homens, por isso elas renascem dentro de suas próprias linhagens familiares. Outras almas renascem em outras formas por diferentes razões.
A Imortalidade da Alma e a Doutrina “Pitagórica” Céltica
Escavar o antigo entendimento druídico clássico sobre a “alma” é algo que nos traz mais trabalho do que parece. O “tabu” druídico sobre a escrita fez com que muito sobre seu conhecimento tenha sido perdido. Precisamos nos valer de comentários de cronistas gregos e romanos, muitos dos quais não amigáveis à cultura céltica, com textos rasos, ambíguos e muitas vezes tendenciosos. Ainda assim, é o melhor que temos para entender o pensamento druídico nos tempos clássicos, por isso temos de aceitar essa limitação. De grande importância para esse entendimento é a citação de que os Druidas possuem uma doutrina “pitagórica” entre os seus ensinamentos. Obviamente, não estamos querendo dizer (ou negar) que os Druidas tenham estudado com Pitágoras ou seus discípulos, mas que possuíam um pensamento que era semelhante o bastante ao da doutrina pitagórica a ponto de ser comparado a ela. Mas estamos nos adiantando. Antes de tudo, precisamos descobrir o que sabemos sobre o pensamento druídico clássico a respeito da alma e do pós-morte, antes de nos voltarmos para a doutrina de Pitágoras para descobrir suas semelhanças.
- Posidônio (em trecho citado por Deodoro da Sicília) é o primeiro a nos dizer que os Druidas acreditavam na “Doutrina Pitagórica”, que dizia que as almas humanas eram imortais e voltariam a nascer em um novo corpo após certo número de anos passados. Em outro trecho, citado por Estrabão, é dito que os Druidas ensinavam que as almas dos homens e o Universo eram indestrutíveis, mas que um dia água e fogo estariam sobre eles. Também é citado o hábito céltico de lançar cartas às piras funerárias dos mortos, para que eles pudessem lê-las.
- Júlio César também reforça a afirmação de que eles acreditavam na imortalidade da alma e que esta passaria de um corpo para outro após a morte, e que essa era uma das fontes do destemor gaulês em batalha.Também diz que todos os gauleses diziam descender de Dis Pater, e que isso era ensinado pelos Druidas, e que por isso eles medem o tempo pela passagem das noites, não dos dias, e seus aniversários, meses e anos sempre se iniciam à noite.
- Lucano cita que os Druidas diziam que o espírito vivia uma vez mais em outro mundo, sendo a morte apenas a metade de uma longa vida. Ele também nos cita que os Bardos conduziam as almas dos valentes à morada imortal.
- Diógenes Laércio cita a primeira Tríade druídica registrada: eles ensinavam os homens a adorar os Deuses, não fazer nenhum mal e a exercitar a bravura. Como citamos enquanto falávamos dos outros ramos indo-europeus, é importante conhecer as bases morais dos povos para que saibamos qual seria o destino das almas após a morte na sua crença.
- Sílio Itálico nos diz que os celtas ibéricos acreditavam que era glorioso cair em combate e que pensavam que seu espírito seria levado aos Deuses se devorado por aves carniceiras no campo de batalha.
- Pompônio Mela reforça a afirmação de que as almas dos homens são imortais e que havia uma nova vida junto aos mortos, o que usa para justificar costumes gauleses como os de se atirar nas piras funerárias de seus entes queridos, ou de adiar o pagamento de dívidas até a passagem para o Outro Mundo.
- Hipólito cita que a “Doutrina Pitagórica” chegou aos Druidas através dos ensinamentos do trácio Zamolxis.
- Procópio de Cesárea diz que os gauleses acreditavam que partiriam em direção ao norte após a morte, para pegar barcos em direção aos seus destinos finais no Outro Mundo.
Apesar de serem pequenos fragmentos de informação, é possível encontrar paralelos claros aos outros ramos indo-europeus. A alma é imortal e indestrutível, ao menos até o final dos tempos. Por sua alma ser imortal, os gauleses eram impelidos a praticar a bravura, um dos seus grandes valores, além de não praticarem a maldade (possivelmente pelo mesmo motivo, uma vez que os outros ramos indo-europeus nos falam de destinos temíveis para os que são vis) e honrarem aos Deuses (idem). A citação de Lucano acaba gerando o que é uma discrepância para alguns, mas que para outros complementa a informação: a morte é a metade de uma Longa Vida, que continua em Outro Mundo, e que precede o renascimento futuro em outro corpo, e pode inclusive ser contatada após a morte, durante o momento de sua cremação. A evidência de que o pensamento céltico era cíclico é encontrada na informação dada por César, de que os gauleses acreditavam que eram descendentes de Dis Pater, o deus do Submundo, evidenciando que acreditavam que este lugar era sua origem, além de seu destino final; com César cita, os celtas contavam seus períodos de tempo a partir das noites, por isso não é absurdo teorizar que contavam a vida a partir do Submundo para o qual retornariam após a morte, após o qual retornariam para a vida, como pode ser evidenciado por um dos painéis do Caldeirão de Gundestrüp, que mostra homens caminhando na direção de uma deidade com um caldeirão, e sendo liberados em um plano superior; a separar os dois planos, uma árvore, o Axis Mundi. O fato de os homens renascidos irem até a deidade a pé e renascerem a cavalo pode ser uma evidência de que o ciclo de morte e renascimento seguisse um padrão evolutivo, mas ainda é precoce afirmar isso de forma peremptória.
O relato de Procópio de Cesárea nos oferece uma variação, onde as almas dos mortos partem para o mar (um tema que é comumente conhecido do mito céltico insular, mas que também pode ser refletido na crença hinduísta de que a alma segue para o sul, sendo esta a direção para o oceano na Índia), que provavelmente é uma das representações do Submundo céltico (através da conhecida fórmula insular Terra/Céu/Mar, que se reflete no equivalente gaulês Terra/Céu/Submundo; para evidenciar ainda mais isso, os sacrifícios humanos feitos à tríade divina da Gália eram queimados para Taranus, uma referência ao fogo dos Céus, o raio; enforcados em uma árvore para Esus, representando o reino da Terra, sendo que a deidade era representada cortando uma árvore; e afogados em tonéis para Teutates, representando o Submundo, o reino dos Ancestrais que poderia ser alcançado nas profundezas). Obviamente, esse não era o único destino das almas: vemos que aqueles que caíam em batalha ou outros feitos de bravura podiam ser levados para destinos elevados, fosse por serem devorados por aves carniceiras (os emissários dos deuses dos mortos?) ou por serem imortalizados nas canções dos Bardos (o que evidencia uma possível ligação com a crença helênica de que a alma é privilegiada enquanto for lembrada, mas sem a necessidade de sê-lo apenas pelos seus descendentes).
O último ponto a ser examinado aqui (antes de partirmos para a doutrina de Pitágoras em si) é citação de que a “doutrina pitagórica” chegou até os Druidas através de Zalmoxis, um trácio de nascimento. Zalmoxis era a principal deidade do povo dos Getas, que viviam no baixo Danúbio. Sobre ele Heródoto nos diz que era originalmente um ser humano que ascendeu ao posto divino na crença local. De acordo com a sua crença, as almas eram imortais e que se juntavam ao deus na morte. Porém, alguns cronistas ainda nos dizem que Zalmoxis foi um escravo de Pitágoras, e que assim ele teria aprendido a doutrina da imortalidade da alma e da encarnação. Independente disso, mesmo que os Druidas da Gália tenham tido contato com o culto a Zalmoxis (ou com o próprio Zalmoxis, caso estejamos falando de um homem mortal), nos parece improvável que sua doutrina tenha se desenvolvido e crescido a ponto de ser adotada por todo o mundo céltico, com paralelos claros nos mitos insulares muito posteriores. Porém, também nos parece impossível negar que o mundo céltico continental possuía alguma ligação com o mundo helenístico (bem como o de outras tribos “bárbaras”), por isso a influência da filosofia grega no pensamento druídico é quase certa.
Para analisar exatamente onde a doutrina de Pitágoras parece realmente se assemelhar ao pensamento druídico, é preciso conhecer um pouco sobre ela. Pitágoras de Samos foi um dos grandes filósofos do período Pré-Socrático. Seu pensamento envolvia diversas áreas, incluindo a natureza da alma e a matemática, e integrava essas diferentes linhas de conhecimento. Como cita o Druida Brendan Myers, “Pitágoras pensava que a alma humana (e todo o universo) é um conjunto de elementos (o corpo, a mente, e suas várias disposições e hábitos) que se relacionam entre si dessa forma matematicamente elegante e harmoniosa”. A doutrina de Pitágoras, por envolver campos tão distintos, acabou por se dividir em duas escolas distintas: os Matemathikoi (que mantinham que a alma era uma harmonia de elementos, portanto não reencarnava) e os Akousmatikoi (que diziam que a alma reencarnava, seguindo o pensamento de Pitágoras sobre religião, que dizia que a alma era imortal, que ela se transformava em outros tipos de animais, e que tudo viria a renascer um dia). Curiosamente, ambos os pensamentos parecem profundamente ligados ao pensamento druídico: a doutrina dos Matemátikoi possui semelhanças enormes com o pensamento folclórico gaélico sobre a Grande Canção, bem como o sistema elemental irlandês dos Dúile; já o pensamento dos Akousmatikoi é perfeitamente integrável aos textos clássicos sobre a crença na imortalidade da alma dos Druidas, nas análises típicas feitas a respeito dos poemas de Amhairgen e Taliesin, bem como a toda uma tradição folclórica céltica insular que nos citam almas que morrem e retornam em outras formas. No final, os sistemas não são excludentes entre si, mas a busca lógica de um dos grupos se tornou incompatível com a busca espiritual do outro. Mas dentro do pensamento original de Pitágoras, ambos os sistemas eram complementares.
O fato de ambos os pensamentos sobreviverem na tradição druídica ainda não é uma prova de que eles tenham aprendido com Pitágoras, mas ainda é uma evidência de que suas doutrinas eram muito próximas. A imortalidade da alma, a passagem para outros corpos, a formação da alma comparada ao universo, tudo isso já é visível nos rasos relatos dos cronistas clássicos sobre os Druidas. Sobre o pensamento dos Matematikoi, ele não é exatamente o escopo desse artigo, mas serão pincelados quando unirmos esses aspectos ao que podemos aprender sobre a mitologia insular. Mas até aqui, encontramos:
- a) A crença na imortalidade da alma e do universo, ambos formados por conjuntos harmônicos de elementos.
- b) A origem do ser humano no Submundo (por vezes representado pelo Mar) para o qual ele retorna após a morte, evidenciando um ciclo.
- c) O renascimento no Outro Mundo, onde se vive por um período de tempo (a outra metade da Longa Vida)
- d) O retorno ao mundo dos vivos em outro corpo (que pode ser ou não humano, de acordo com a doutrina de Pitágoras), em um sistema possivelmente evolutivo (ou simplesmente de “metempsicose”, onde a alma retorna em uma forma diferente da anterior).
- e) Um destino mais bem-aventurado pode ocorrer aos que morrerem em bravura ou forem imortalizados pelas canções.
Basta comparar com os outros ramos indo-europeus e as semelhanças saltam aos olhos.
O Mito e o Folclore Céltico Insular
Ainda que não tenhamos informações diretas (como textos doutrinários ou tratados filosóficos) sobre os destinos da alma no mito céltico insular, a mitologia e o folclore nos dão uma gama muito grande de possibilidades do que poderia ser a crença céltica no pós-morte. Essas fontes tem sido usadas de forma isolada pelas diversas tradições pagãs contemporâneas, muitas vezes sem critérios muito rígidos, basicamente porque as crenças mais agradáveis parecem ser mais dignas de serem levadas em consideração pelos devotos contemporâneos. Isso não é, em nenhum momento, uma negação dessas crenças. É apenas uma análise que envolve não apenas o “o que”, mas também o “porquê” e o “o que mais”, perguntas que não costumam ser feitas, do ponto de vista filosófico e espiritual. Se observarmos as diversas possibilidades que encontramos no mundo céltico insular, não precisaremos de muito para perceber que os “destinos da alma” contradizem uns aos outros. Por isso, a maior parte das tradições pagãs contemporâneas adota apenas uma das visões, negando as outras peremptoriamente; dessa forma, os reconstrucionistas acreditam que a doutrina céltica da alma fala sobre a morte e a reunião com os Ancestrais, os druidistas contemporâneos falam sobre a jornada das almas em direção à Terra do Verão, enquanto outras ordens falam em reencarnação e metempsicose. Apesar de algumas poucas visões unirem essas possibilidades, a maioria prefere não o fazer, o que pode ser um erro. Pois, se as analisarmos em perspectiva, podemos perceber que elas podem ser, na verdade, mais complementares do que conflitantes.
A primeira visão que acredito que temos de avaliar, tendo em vista a sua quantidade de informações, é aquela que nos diz que as almas embarcam em uma jornada (normalmente marítima) com destino às ilhas do Outro Mundo. Antes de tudo, é preciso entender que essa visão não é uma “inovação” insular, sendo registrada por Procópio de Cesárea já no século VI; ele afirmava que os gauleses (ou gálatas) acreditavam que os mortos iriam para o norte, para pegar barcos que os levariam para o seu destino. Assim, encontramos uma visão céltica já muito anterior às Imramma, mas que é um paralelo indo-europeu bastante claro, como veremos adiante. A ideia de que o Outro Mundo estaria em um lugar no além-mar está presente tanto na tradição gaélica quando britônica, ainda que a primeira nos ofereça uma quantidade muito maior de informações. Por isso, iniciaremos esse estudo com as informações britânicas, muito mais básicas, para depois complementarmos com as informações vindas da Irlanda.
Creio que a primeira versão que temos de avaliar sobre essa visão é justamente a mais famosa de todas: a que nos diz que o Rei Arthur foi ferido em batalha e levado para Avalon. Creio que todos conhecem a lenda de uma forma mais ou menos básica: na Batalha de Camlann, o Rei Arthur se bate com seu filho/sobrinho/inimigo Mordred/Medraut e cai ferido; seu corpo é então levado por Barinthus em uma viagem marítima para Avalon onde se recuperaria e retornaria no dia em que os britânicos mais precisassem. Apesar das diversas variações, o panorama básico da lenda é esse. Mas o que seria Avalon? Seria ela um “paraíso céltico”? Seu nome é uma das mais ricas fontes de especulação dos mitos célticos. Seu nome nos mitos galeses é Ynis Afallach, que pode ser traduzido tanto como Ilha de Afallach quanto como Ilha das Maçãs. Afallach é uma deidade galesa do qual possuímos poucos registros, mas cuja “família” pode nos ajudar a inferir algumas informações: ele é um filho de Nudd, o que pode sugerir que tivesse a afinidade familiar com o mundo dos psicopompos, uma vez que a possível versão primitiva de Nudd, Nodens, que possuía um notável templo em Lydney (em uso até o século V), parecia ter profundas associações com o Outro Mundo e o mar, enquanto outro dos seus filhos, Gwynn, é um dos psicopompos por excelência da mitologia galesa, sendo o guia da Caçada Selvagem (que levava as almas dos mortos para o Outro Mundo) e o guardião das portas do Annwn (o Outro Mundo no mito galês), sendo também chamado de “Rei dos Mortos”. Ao que parece, a família de Nudd tinha uma grande habilidade com a guia das almas para o Outro Mundo. Já a segunda tradução do nome, Ilha das Maçãs (citada na Vita Merlini por Geoffrey de Monmouth em latim, Insula Pomorum), nos traz uma ligação muito clara com uma ideia tradicional sobre o paraíso céltico, que é a de que o Outro Mundo dos afortunados e imortais fosse permeado de macieiras (compare com o nome de um dos reinos regidos por Manannán Mac Lir, Emhain Abhlach, a “Planície das Maçãs”, bem como o Jardim das Hespéridas dos gregos) ; além disso, o Outro Mundo é o local onde os Deuses provam do banquete da imortalidade, seja a Ambrosia para os Olímpicos, a Cerveja de Goibnhiu, ou as Maçãs de Iduna dos nórdicos, mostrando que a relação do paraíso dos Imortais com as maçãs é um padrão indo-europeu ocidental bastante amplo).
Avalon é o paraíso celta? Ao que tudo indica, seria algo semelhante aos Campos Elíseos para os britanos, mas alguns fatos precisam ser levados em consideração, principalmente a possibilidade de Avalon ser associada a lugares físicos. Na Vita Merlini, Geoffrey descreve que ali vivia Morgan Le Fay, a líder de nove irmãs feiticeiras (Moronoe, Mazoe, Gliten, Glitonea, Gliton, Tyronoe, Thitene Thiton). A descrição possui alguma semelhança com o poema galês medieval Preiddeu Annwn (“Os Espólios de Annwn”,http://www.ramodecarvalho.com.br/mitologia/mitologia-britonica/os-espolios-de-annwn/), que possui uma estimativa de antiguidade que se estende do século VI ao IX; nele, Arthur parte em uma viagem de barco ao Outro Mundo (Annwn, do proto-céltico Andedubnos, “O Não-Mundo”, “Mundo Inferior”) em busca de um Caldeirão místico e outros objetos mágicos, uma espada entre eles, ao que parece saída de dentro do próprio; ainda na descrição, nos é dito que o Caldeirão é aquecido pelo sopro de nove donzelas. Se as nove donzelas fossem os equivalentes de Morgana e suas irmãs, tudo parece se encaixar perfeitamente. Porém, se retrocedermos até os tempos dos observadores, vamos encontrar um relato de Estrabão citando as nove sacerdotisas dos Samnitae que viviam em uma ilha na foz do rio Loire, que praticavam estranhos ritos “dionisíacos” e vaticinavam, uma descrição que não é completamente semelhante, nem diferente o bastante. Alguns podem dizer que é improvável que Estrabão tenha visitado essa ilha pessoalmente, que provavelmente ele teria ouvido falar dela, tornando-a uma ilha lendária, portanto, não um lugar físico e alcançável por todos.
Mas a busca por uma Avalon “física” ainda não terminou. No final do século XII, Avalon começou a ser associada com a região da abadia de Glastonbury (não exatamente uma ilha, mas tendo sido próxima a isso no passado, antes que as estradas fossem construídas sobre os pântanos ao seu redor), principalmente por instigação do cronista medieval (e notório forjador) Giraldus Cambrensis, que dizia que o nome original da área era Ynys Witrin (“a Ilha de Vidro”), sendo que ela não era mais reconhecível como uma ilha na sua época. A ainda polêmica descoberta na Idade Média do túmulo do Rei Arthur nela (desmentida por muitos arqueólogos contemporâneos, mas ainda defendida por alguns outros) traz a possível associação, onde é dito que os monges desencavaram uma cruz com a seguinte inscrição: Hic jacet sepultus inclitus rex Arturius, cum Wenneveria, uxore sua secunda, sepultus in insula Avalonia (“Aqui jaz o renomado rei Arthur, com Guinevere, sua segunda esposa, sepulto na ilha de Avalon”). As ligações não param por aí: em Glastonbury é dito que José de Arimateia teria escondido o Santo Graal, o Cálice de Cristo, que coletou o sangue do Messias e que seria buscado posteriormente pelos Cavaleiros da Távola Redonda. Apesar do tradicionalismo do mito cristão medieval, hoje é plenamente entendido que os mitos da busca do Graal são versões medievais de lendas mais arcaicas, abundantes nos mitos celtas, onde guerreiros partem em busca de Caldeirões da Regeneração no Outro Mundo. Porém, se o Graal é simplesmente um símbolo cristão que substitui um caldeirão pagão, bom, Arthur é conhecido por ter buscado o símbolo cristão, mas também por ter feito a caçada a um caldeirão do Outro Mundo em uma de suas lendas mais arcaicas (justamente o Preiddeu Annwn). Portanto as lendas do Santo Graal não apenas se aproveitam do panorama original pagão das crenças sobre o Outro Mundo, mas também mantém seu significado quase intacto, apenas intercambiando os símbolos pagãos por cristãos. Quanto a possível existência física de Avalon, possivelmente essas ilhas antigas (no Loire, Glastonbury, Mona, Iona) eram vistas como possuindo fortes ligações com o Outro Mundo, sendo ali suas passagens para ele, ou pedaços/contrapartes do Outro Mundo alcançáveis na Terra. Porém, um último aspecto deve ser dito: Barinthus veio ao mundo buscar o Rei Arthur, um grande rei, guerreiro e herói lendário. Assim, com todas as semelhanças que Avalon carrega com os Campos Elíseos, podemos inferir algo que é bastante óbvio: Avalon, se realmente for um dos “paraísos celtas”, é um destino para almas elevadas, grandes heróis, provavelmente não sendo o local de descanso dos mortais comuns e sim para aqueles que viveram vidas grandiosas.
Mas como seria esse Outro Mundo céltico, então? O mito galês nos oferece descrições muito vagas de Annwn, citado como um local enigmático e cheio de maravilhas, regido por Arawn ou por Gwynn ap Nudd (conhecido também como “o Rei dos Mortos”). O Preiddeu Annwn nos sugere que ele pode ser alcançado por mar, assim como a Avalon arthuriana, sendo composta por inúmeras ilhas-fortaleza, tais como Caer Siddi, Caer Pedrivan, etc. Porém o mar não é a única forma de se chegar a Annwn, como Pridery e São Collen descobrem. Ao que parece, o reino tem um caráter completamente transcendente, uma vez que se pode chegar até ele tanto por terra quanto por mar. Como citado, as descrições galesas sobre Annwn ainda são um tanto vagas, mas envolvem ilhas-fortalezas que são protegidas por anéis de fogo e caldeirões e caldeirões que são aquecidos pelo sopro de donzelas (como já citado acima, quando falado sobre as confrarias femininas das ilhas míticas), sugerindo uma terra inegavelmente mágica e sobrenatural. Já Avalon, caso realmente ela carregue uma ligação com o Annwn (talvez como uma de suas muitas ilhas), seria uma ilha mítica para onde Arthur seria levado (não se sabe se vivo ou morto) para se recuperar para um dia voltar. Se nos voltarmos para os mitos irlandeses, as Imramma nos mostram todo um cosmos mítico de diversas ilhas do Outro Mundo. Como as ilhas-fortaleza de Annwn, diversas dessas ilhas são cheias de maravilhas e portentos (e também perigos), enquanto outras parecem locais de repouso apropriado aos mortos. A palavra Imramm significa “remação”, o que sugere que esse Outro Mundo irlandês só pode ser alcançado via marítima. Essa é uma meia verdade, mas falaremos disso mais tarde. As ilhas paradisíacas do mito irlandês são descritas em textos como a Imramm Brán Mac Fébail e a Imramm Maél Dúine (dentre muitos outros), que nos mostram uma variedade enorme de ambientes, tais como Tir Na n-Óg (a “Terra da Juventude”, onde as pessoas são jovens para sempre), Emhain Abhlach (a “Planície das Maçãs”, um cognato bastante próximo de Avalon) e a “Terra do Verão”, onde o calor e a alegria são eternos. Mais sombria é a descrição da Tech’n Duinn (“a Morada de Donn”), lar do primeiro mortal assassinado na Irlanda e que se tornou aquele que recepciona em sua morada todos aqueles que ali morrem.
Então essa concepção das ilhas do Outro Mundo seria a visão do caminho das almas na mitologia céltica insular? Mais ou menos. Precisamos desenvolver esse tema. Inicialmente, a proposta faz todo o sentido, e ainda encontra o paralelo na Gália com a descrição de Procópio de Cesárea. Dentro dessa concepção, os mortos encontrariam seu caminho em uma jornada de barco ao Outro Mundo, onde descansariam em uma de suas muitas ilhas. Mas qual delas? Muitas variáveis surgem quando pensamos nisso. É consolador pensarmos nas viagens de Brán, Connla, Oísin, Caoílte e Arthur, e assumirmos que o destino na visão insular é o de uma ilha abençoada e de prazeres, vivendo no banquete de Manannán e bebendo da cerveja da imortalidade de Goibhníu. Mas uma vez mais pensemos: quem foram esses homens? Grandes guerreiros, grandes reis, homens memoráveis cujos nomes seriam gravados nas eras do mundo. Assim como no caso do Elísio e do Valhalla, não me parece que esse fosse o destino de todas as almas, a não ser as mais elevadas, aquelas que mais fazem a diferença pelo seu povo. O relato sobre Donn (junto ao de Procópio) sugerem que todos embarcam em uma viagem de barco ao outro mundo, mas nada diz que todos terão o mesmo destino, uma vez que o Outro Mundo é vasto e com dezenas de ilhas. Por isso, é muito possível que alguns tivessem destinos mais fortuitos do que outros. E por quanto tempo se viveria nesse Outro Mundo? Como vimos antes, é bastante possível que não existisse um conceito de permanecer eternamente no pós-vida dentre os indo-europeus. Mesmo os guerreiros mortos e selecionados por Odin retornariam no Ragnarok, mas estes teriam data e hora e certa para pisar uma vez mais em solo mortal. E quanto aos outros? Para os gregos, que tinham um culto aos Ancestrais bem definido, a estadia no mundo dos mortos duraria enquanto o seu nome fosse lembrado por sua família; após o esquecimento, a alma deixaria o Outro Mundo (estivesse no deleite, estivesse purgando seus pecados) e seu destino seria incerto (o renascimento parecia uma opção, contudo). O mito irlandês é bem claro: aqueles que se sentam no banquete de Manannán bebem da cerveja da imortalidade de Goibhníu. Mas, como dissemos, e se esse não for o destino de todos? Haveria uma nova morte no Outro Mundo, como sugere o relato de Lucano? Ainda há mais a questionar: mesmo os maiores heróis entre os celtas, aqueles que encontram seu caminho para as Ilhas Abençoadas, retornariam: Arthur, como os guerreiros nórdicos, teria uma ocasião específica para retornar, mas Bran, Caoilte e Oisin, todos tiveram o desejo de retornar após algum tempo (muito mais do que uma vida mortal) passado nos idílios paradisíacos. Ao que parece, não importa o quão abençoado seja o destino, é o desejo da alma humana um dia retornar a esse mundo.
O Outro Mundo insular, seja na sua versão irlandesa, seja na sua versão galesa, nos parece uma releitura muito aproximada ao Submundo da Gália. Tanto no mito da Caverna de Donn (uma caverna em uma ilha oculta no sul da Irlanda, onde um deus morto recebe os mortos) quanto no de Annwn (um reino governado pelo Rei dos Mortos, e que possui um mito que é um paralelo quase exato da lenda de Hades e Perséfone), ele nos sugere que o nosso caminho é partir para um Outro Mundo onde viveremos, mas então retornaremos ao mundo um dia. Toda a vida no mito céltico insular veio do Outro Mundo, incluindo as Tuatha Dé Danann, que viveram nas Ilhas ao Norte do Mundo, ou as tribos britânicas lendárias, que teriam vindo de Tyr yr Haf (a “Terra do Verão”, um paralelo claro ao mito irlandês). Provavelmente, se nos basearmos na mitologia comparada indo-européia, haveria um (ou vários) locais de descanso para aqueles com nomes elevados, e outros (ou vários novamente) locais de descanso para aqueles que viveram vidas menos espetaculares, mais comuns, vivendo junto aos seus Ancestrais. Os costumes folclóricos escoceses também diziam que era importante que os mortos recebessem funerais adequados e tivessem seu corpo velado com tochas (e posteriormente velas) queimando ao seu lado por algum tempo, para que seu caminho fosse iluminado e eles não se perdessem (um paralelo claro à crença hindu citada no Garuda Parana); ou seja, havia uma multiplicidade de destinos a se alcançar, inclusive alguns involuntariamente. Todos fariam a sua viagem, mas a mitologia também parece sugerir que eles retornariam, uma vez que a própria alma humana deveria ansiar por esse mundo. Contudo, esse retorno não seria permitido a todos. Ao menos para aqueles que viviam entre os bem-aventurados, é prometida a juventude eterna e alegrias sem fim, mas onde se torna impossível retornar ao mundo dos mortais sem terríveis conseqüências. E quanto aos que não bebem da cerveja de Goibhníu? Que tenham encontrado seu caminho para uma das muitas outras ilhas do Outro Mundo? Seria a morte realmente o “meio” da “longa vida” e a outra metade também deveria encontrar seu fim em algum momento? Outro momento enigmático, mas que parece sugerir isso é uma imagem que surge no conto de Peredur filho de Efrawc, um dos contos arthurianos que costumam ser associados aos Quatro Ramos do Mabinogion. Nesta imagem, o herói viaja pelo coração da Britannia e encontra uma cena estranha: em um vale cortado por um rio há apenas uma árvore. Um dos lados da árvore está sempre verdejante, mas o outro lado está permanentemente em chamas. Ela fica ao lado do rio, onde em cada margem se ajunta um rebanho de ovelhas. As ovelhas de um lado são negras, as ovelhas de outro lado são brancas. Quando uma ovelha de um dos lados bale, uma ovelha do outro lado pula no rio e o atravessa, bem como ela faz o mesmo. Quando terminam a travessia, a ovelha do lado branco se tornou negra e a ovelha do lado negro se tornou branca. Esse trecho tem sido interpretado como uma representação da crença galesa de que, para uma alma voltar a esse mundo, outra alma precisa ir para o Annwn, e as próprias almas chamam umas às outras quando é chegado o momento (como as carnyxes dos homens no Caldeirão de Gundestrüp chamam os homens no plano superior uma vez mais para o mundo dos mortos). Essa cena seria repetida de forma bastante similar no mito irlandês da Imramm Maél Dúine, onde os navegantes encontram, em uma das muitas ilhas que visitam, um rebanho de vacas dividido por um rio, enquanto um gigante fica sentado ao lado. Cada vez que ele move uma vaca para um lado do rio, ele move outra vaca para a outra margem. Ao menos nos parece que esse simbolismo do “intercâmbio” entre as almas é algo muito presente na mentalidade céltica, com evidências na Gália, na Grã-Bretanha e na Irlanda.
Dito isso, nos falta apenas avaliar a possibilidade das crenças na Metempsicose e na Reencarnação no mito céltico insular e no seu folclore. Ambas as crenças costumam ser defendidas por linhas de pensamento neodruídicas e negadas por reconstrucionistas (as linhas do Druidismo do Renascimento são uma história completamente diferente, como veremos). A principal fonte de argumentos a respeito da existência em uma crença na Metempsicose dentro pensamento céltico insular costuma vir dos poemas de Amhairgen e Taliesin, com seus inúmeros “eu sou/ eu fui”, incluindo aí entidades absolutamente abstratas (como “eu fui um grito na batalha”), objetos manufaturados (“eu sou a ponta da lança em batalha”) e diversos animais, vegetais e mesmo pontos topográficos. Os reconstrucionistas costumam alegar que essa é uma evidência bastante frágil, podendo representar apenas figuras de linguagem, e mesmo as linhas druídicas divergem nas intepretações desses poemas (algumas alegando que elas tem menos a ver com uma noção temporal, de vida, morte e renascimento, mas sim espacial, de percepção da conexão universal com todas as coisas). Seria impossível dizer que algum dos lados não tem argumentos, mas se a mesma fonte de argumentos é negada por um lado e apontada por outro, então outras devem ser buscadas para ambos os lados. A visão reconstrucionista costuma se basear na ideia de que a alma vai para o Outro Mundo e lá permanece com os Ancestrais, algo que já vimos como bastante discutível no último parágrafo, uma vez que nem todos seriam elevados o bastante para serem recebidos ao Banquete de Manannán, e que mesmo os que o fossem carregariam dentro de si o desejo de voltar, fosse Bran, fosse Caoílte, fosse Oísin, fosse Fionn, fosse Arthur. Se os mais elevados dos homens, recebidos no Banquete de Manannán, desejariam voltar, por qual razão o mesmo não ocorreria com os homens comuns? Assim, ao menos o Renascimento poderia ocorrer. Mas a Metempsicose é impossível? Não é o que a mitologia sugere. Na Segunda Batalha de Magh Tuiread nos é citado que Balor jogou da sua torre todos os filhos das criadas que haviam sido engravidadas por Cian. Apenas Lugh, o filho de sua filha Ethne, foi salvo por Manannán, os demais se tornaram as Selkies, as crianças-foca do folclore irlandês. É uma pequena, mas inegável sugestão da possibilidade da continuidade da vida em forma animal. O cancioneiro folclórico irlandês também carrega a memória de homens e mulheres que se tornavam animais; talvez a peça mais impressionante desse aspecto por vezes tão negado da tradição seja a canção tradicional The Bonny Swans, magistralmente musicada por Loreena Mckennitt, onde uma jovem nobre é afogada por sua irmã e se torna um cisne, que por sua vez é sacrificado para a feitura de uma harpa no qual sua alma habitará. Ainda que muitos não levem em consideração o material folclórico, ele nos oferece evidências de que a crença na Metempsicose poderia ser uma verdade no mundo céltico insular. Quanto ao Renascimento, esse também é difícil de se verificar: Taliesin (renascido do ventre de Cerridwen) e Étain (renascida do ventre de Etar) são personagens renascidos, ainda que aqueles que negam essa crença possam alegar que o seu renascimento tenha muito mais a ver com a sua própria morte (engolidos por Cerridwen e Etar) do que por uma crença céltica em si. A resposta poderia estar nos personagens cujo retorno era esperado, mas os mitos também não são claros sobre isso. Ainda que alguns acreditem que Arthur e Fionn “renasceriam” para guiar novamente seu povo, outros alegam que a tendência céltica na criação de montes tumulares amplamente decorados com riquezas poderia indicar a crença na dependência do corpo original e, portanto, mais na “Ressurreição” do que na Reencarnação. Ainda que a crença faça sentido para os nobres e elevados (que, em teoria, possivelmente estariam em um destino abençoado no Outro Mundo), não explica como poderia ser a visão do pós-vida para aqueles que não desfrutavam desse tratamento dado a tão poucos.
Devido a essa escassez de confirmações, o panorama céltico deixa as possibilidades mais abertas a discussões e que poderiam ser respondidas através da comparação com a base indo-europeia. Mas ainda não é o momento de fazer essa tentativa. Aqui fecharemos com o panorama céltico antes de irmos para a próxima área de estudos:
- As almas dos homens são imortais e indestrutíveis. (Posidônio, Deodoro da Sicília, Júlio César, Pomponio Mela)
- A origem da alma está no Submundo/Mar, o reino para o qual volta na morte. (Júlio César, Ilhas do Norte do Mundo, Terra do Verão)
- No momento da morte, as almas partem em uma jornada para o Outro Mundo (normalmente descrita como marítima, mas não só), podendo encontrar vários destinos ou mesmo se perder. (Procópio de Cesárea, Avalon, Preiddeu Annwn, Imramma, St. Collen, Donn)
- O guerreiro digno e caído em batalha ou abençoado pelas canções dos Bardos era levado pelas aves carniceiras para o seu destino abençoado. (Sílio Itálico)
- Há outra vida junto aos mortos, a “outra metade” da vida. (Deodoro da Sicília, Pomponio Mela, Lucano, Avalon, Bran, Donn)
- Os elevados e lendários recebiam um lugar onde provariam do líquido da imortalidade ou de seus frutos, possivelmente ficando no Outro Mundo para sempre. (Avalon, Imramma, Bran, Caoilte, Oisin)
- É possível se comunicar com as almas dos mortos. (Estrabão, Pomponio Mela)
- A alma poderia encontrar um novo corpo após determinado tempo e renascer (ou ressuscitar). (Júlio César, Posidônio, Avalon, Fionn, Etain, Taliesin)
- Quando uma alma volta a esse mundo, outra alma parte para o Outro Mundo. (Peredur, Mael Dúine, Caldeirão de Gundestrup)
- É possível o retorno em diversas formas não necessariamente humanas, talvez de forma relacionada à morte. (Taliesin, Amhairgen, folclore irlandês, Selkies)
A Doutrina do Renascimento Druídico
Saindo completamente do padrão, encontramos o movimento do Renascimento Druídico, que possui uma visão própria e bastante particular do caminho das almas: os Três Círculos da Manifestação. Ainda que muitas pessoas atribuam a criação desse sistema de pensamento a Iolo Morgannwg, a verdade é que eles são citados em documentos anteriores ao seu nascimento. As versões mais antigas em que eles são citados estão nos escritos do poeta escocês James Thomson (1700-1748). Posteriormente, Iolo incluiu o conceito nas Barddas, ainda que não se saiba como eles teriam chegado ao seu conhecimento. Ainda que a maioria das pessoas acredite que uma cópia do trabalho de Thomson tenha chegado às mãos de Morgannwg, há ainda quem acredite na existência em uma fonte comum (e anterior) a ambos. Ainda assim, influências do Budismo e Hinduísmo são bastante visíveis. No geral, não temos como afirmar nada com certeza, a não ser que a crença dos Três Círculos de Manifestação permanece viva até hoje.
Seu sistema de pensamento é mais complexo do que as crenças indo-europeias que estudamos anteriormente, uma vez que foi criada (ou reinterpretada) em uma época muito posterior. Mas, se podemos resumir de forma muito básica, ela existe dessa forma: todas as almas tem sua origem no Caldeirão de Annwn, o reino mineral onde todos os resíduos espirituais se concentram. Quanto mais jovem a alma, mais simples a forma de vida no qual ela encarna, passando por esse processo evolutivo e se tornando gradualmente mais complexa. Quando a alma atinge a complexidade vegetal ou animal, seu lugar de renascimento passa a ser o Círculo de Abred, basicamente o mundo em que vivemos, onde todos nascem, vivem e morrem para renascer novamente, podendo até mesmo retornar a Annwn, dependendo do quanto decaía. Esse ciclo permanece até que a alma tenha evoluído o suficiente para atingir Gwynfydd (“o Mundo Branco), o local de descanso das almas afortunadas, onde irá aprender a sabedoria do Outro Mundo, readquirir todo o conhecimento de suas vidas passadas, ser iluminado pela Awen e atingir um novo ciclo de evolução. Então a alma pode finalmente ascender até Ceugant, a unidade divina com a Criação, a união com o Incriado, quando então pode iniciar o processo novamente.
Obviamente, estamos falando de um processo completamente diferente daqueles que citamos com os povos anteriores. Ainda assim, quando colocamos todas as “cartas na mesa” e buscamos paralelos e similaridades, é impossível não ver alguns pontos em comum. É óbvio que a minha citação a partir daqui é uma busca tentar “casar” diferentes visões que podem (ou não) ter alguma base comum. Por isso, deixo claro aqui que não estou dizendo que a visão do Druidismo do Renascimento tem realmente uma base indo-europeia ou céltica, ao menos dentro de uma análise acadêmica, mas analisando apenas possíveis paralelos e aproximações entre elas. Com a consciência de que estou especulando abertamente, é possível continuar.
- Inicialmente, a origem das almas no Caldeirão de Annwn se aproxima da afirmação de Júlio César de que os gauleses acreditavam ser descendentes de Dis Pater, o deus do Submundo;
- O ciclo de renascimento em Abred com possíveis retornos a Annwn parece se ligar de forma tênue ao ciclo das almas de nascimento, morte e ida ao submundo.
- A chegada a Gwynfydd se relaciona ao destino das almas elevadas (de acordo com os valores filosóficos da espiritualidade), como o Valhalla, o Elíseo ou o Banquete de Manannán.
- O último estágio de evolução, o ciclo de Ceugant, talvez seja o mais difícil de se associar a conceitos pagãos. A ideia de se fazer parte da unidade divina com o Incriado pareceria estranha a politeístas estritos (ainda que faça sentido para o Hinduísmo). Algumas visões, contudo, incorporam a ideia folclórica escocesa de Deus como a “Grande Canção” (a melodia universal do qual todos fazemos parte) como uma possível evidência de aproximação. Nesse caso, a Grande Canção não seria um “deus” pessoal (como os pagãos ou o cristão), mas uma melodia universal do qual os próprios deuses pessoais seriam parte, a canção que une a tudo. As visões de Amhairgen e Taliesin (que expressam a unidade com as suas cosmovisões pessoais) seriam lampejos da ligação com a Grande Canção (através da Awen ou Imbas), por isso a Òran Mòr seria uma visão baseada no folclore céltico do Incriado e do círculo de Ceugant.
Essa é uma comparação, contudo, muito dedutiva e ainda superficial. Apenas uma análise de possíveis aproximações, mas com a consciência de que estamos falando de realidades e modos de pensamento diferentes. No final, é possível conectar todas essas visões em uma única, mas ela seria facilmente alvo de dúvidas, críticas e pré-julgamentos. Porém, sou da opinião de que nenhum de nós vive no Outro Mundo para dizer exatamente como são as coisas por lá. Tanto os antigos quanto nós apenas temos relances do que há além do véu e interpretações modernas de ideias antigas não são inválidas apenas por não estarem de acordo com o mundo acadêmico (mas poderiam ser inválidas se estivessem fora do escopo filosófico daquela mesma espiritualidade). Assim, apresentarei aqui uma interpretação alternativa, um tanto ousada e provocativa, mas que se pretende ser fiel tanto aos conceitos básicos e filosóficos célticos e indo-europeus, englobando alguma influência das ideias do Renascimento. Por que? Porque cheguei à conclusão que nenhum desses caminhos é realmente excludente um do outro, mas complementares. Com a plena noção de que isso não será plenamente aceito (e nem quero que o seja) pela comunidade druídica no geral, apresento aqui uma visão que é apenas minha (por isso está no meu blog particular). Qualquer dúvida ou correção a esse respeito, estou à disposição.
O Caminho das Almas: Uma Especulação
Pergunta: Qual o caminho das almas entre os mundos dos vivos e dos mortos?
Resposta: Não é difícil. A alma caminha por terras escuras e enevoadas, navega por mares revoltos, viaja por sendas esquecidas até chegar ao seu berço de origem.
Pergunta: Qual o berço do origem das almas?
Resposta: Não é difícil. O berço da alma é o caldeirão de toda a vida, alimentado pelas águas de todos os mares, aquecido pelo sol de todos os verões e pelo sopro das Nove Damas, movido pelo Deus Gigante que é o Pai de Todos.
Pergunta: Todas as almas vagam pelos mesmos lugares após a morte?
Resposta: Não é difícil. Assim como há lugares e recompensas aos elevados no mundo, o mesmo ocorre no Não-Mundo. Há o Banquete das Eras, os Salões dos Guerreiros, as Casas dos Sábios, mas cada qual deve merecer o seu convite a esses lugares. Há os mundos dos Ancestrais para os que não são elevados, mas também não são vis, onde há reencontro e recuperação. Não se permita acreditar em castigos ou presentes. O Não-Mundo abre as portas do merecimento a todos.
Pergunta: Por quanto tempo dura a outra metade da Longa Vida?
Resposta: Não é difícil. Pelo tempo que somos lembrados. Por isso louvar vossos Ancestrais é importante, para que seu lugar no Outro Mundo não seja perdido. Pois o esquecido é aquele que acena de além do Rio do Esquecimento para voltar ao mundo vivo. Pois é por isso que aqueles que tem o nome imortalizado permanecem por tanto tempo entre os Imortais.
Pergunta: E o que ocorre no momento do Renascimento?
Resposta: Não é difícil. O homem é mergulhado nas águas do esquecimento ao atravessar o Rio Lethe ou ser mergulhado no Caldeirão do Deus Pai de Todos, sendo recolocado no mundo para viver uma nova vida, com uma nova chance de aprendizado e elevação.
Pergunta: Há possibilidade de não retornar como um ser humano?
Resposta: Não é difícil. Dependendo dos seus feitos em vida ou da forma de sua morte, é possível que a forma de um ser humano não seja a escolhida para seu retorno.
Pergunta: E o que ocorre aos Elevados?
Resposta: Não é difícil. Estes se banqueteam com seus Deuses e se deleitam com seus iguais até que as eras do mundo mudem.
Pergunta: E há aqueles que não tem nenhum desses destinos?
Resposta: Não é difícil. As almas que se perdem, que não tiveram seu caminho iluminado, que tiveram seu nome rapidamente esquecido, não alcançam os salões e mares do Não-Mundo. Vagam por terras sombrias que não estão nem neste mundo, nem no Outro, surgindo quando as aberturas estão acessíveis.
Pergunta: E há um objetivo nos ciclos das almas?
Resposta: Não é difícil. Os objetivo das almas é o objetivo das próprias vidas. Aos que desejam se reunir com os Ancestrais deve-se evitar a vileza. Aos que desejam ser elevados à presença dos Deuses deve-se evitar a inatividade. E assim vai, até aqueles que desejam se unir à própria Canção, fonte da Awen e de toda a vida, onde tudo começa de novo.
REFERÊNCIAS:
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MYERS, Brendan; The Earth, the Gods and the Soul: A History of Pagan Philosophy from the Iron Age to the 21st Century; Moon Books, 2013