Por Wallace Cunobelinos
Deusa do fogo. Deusa dos ofícios. Deusa da cura. Deusa dos poetas. Estas são apenas algumas das muitas características pelas quais a deusa Bríghid é conhecida, e pelas quais ela é, muito provavelmente, a deidade mais cultuada dentro da espiritualidade céltica contemporânea e, principalmente, pelo Druidismo. Deidade com um culto amplíssimo na Irlanda (como diz o Glossário de Cormac, “entre todos os irlandeses havia uma deusa chamada Brigid”), é amplamente acreditado que seu culto era tão forte entre os irlandeses que não poderia ser simplesmente extinto, e que muitos de seus elementos teriam sido absorvidos pela crença em Santa Brígida, tornando este um caso em que uma figura do cristianismo literalmente toma para si as características de uma deusa pagã, mantendo viva a sua crença. Além disso, a ocorrência de deidades com nomes semelhantes em diversas regiões do mundo céltico faz com que muitos especulem um status “pan-céltico” para tal deidade. Este estudo sobre ela tem um caráter introdutório, sem objetivo de abranger aspectos como visões modernas, práticas atuais de culto e experiências contemporâneas, as quais serão abordadas em outros artigos.
Brigid, Brigantia, Brigindo…
Se analisarmos o próprio nome, Brighid, veremos que ele possui muitas variações, como Brigid, Bríg ou Bride, que são basicamente variações ortográficas de uma fonte comum. Este teónimo encontra também alguns paralelos em outras regiões célticas, como Brigindo, Brigandu, Brigindone (na Gália), Brigantia (na Grã-Bretanha) e Briganti (na Península Ibérica), nomes encontrados principalmente em inscrições, moedas e peças de iconografia posteriores à conquista romana, tais como a inscrição de Birrens, na Escócia, onde a Brigantia britânica é equiparada (pela Interpretatio Romana) a Minerva (deusa da guerra, sabedoria e artes) e Victoria (ao mesmo tempo, pois é equiparada a Minerva, mas surge com as asas e coroa de Victoria), e recebe o epíteto de Caelestis, evidenciando sua posição como deidade celeste. Muitos acreditam que a citação de Júlio César citando o culto a Minerva na Gália também possa se referir à Brigindo gaulesa.
Além disso, o nome também parece estar associado a alguns topónimos que ocorrem na área céltica, tais como cidades como Brigantion (Bregenz, na Áustria), Brigetio (na Hungria), Brigantorum (Brianconnet, na França), Brigantio (Briançon, na França), Brigantione (Britantien, na França) Brigantium (Betanzos, na Espanha), e Brigantia (Bragança, em Portugal), além de rios, como o Brent (Inglaterra), Braint (País de Gales), Bregenz (Áustria), Brechin (Escócia) e Barrow (na Irlanda, antigo Birgu, uma possível transposição de Brigu). Além disso, é teorizado que Brigantia pode ter sido a deusa tutelar de uma suposta confederação tribal conhecida como Brigantes (Brigantii na região dos Alpes, na Gália Cispadana, cuja capital era Brigantion; Brigantii também na Península Ibérica, além de Brigantes, na região de Leinster, no leste da Irlanda, e no norte da Grã-Bretanha, principalmente Yorkshire), descrita por Estrabão e Plínio, além de ter sido a tribo da rainha Cartimandua, que se levantou contra os romanos, mas depois se aliou a eles para entregar Caractacus. Embora não exista certeza de que todos estes Brigantes sejam realmente aparentados, isso não é de todo improvável ou impossível, uma vez que diversas tribos célticas continentais também tinham paralelos insulares, tais como os Parisii ou os Belgae, tornando certamente possível que seus nomes fossem derivados de uma deidade aparentada à Bríghid/Brigantia/Brigindo.
É interpretado que este nome signifique principalmente “A Elevada”, “A Exaltada”, “A Sublime” ou “A Altíssima”, a partir sua raiz primitiva *bríg-, do indo-europeu *bhreg-, que é relacionada principalmente com a ideia de “altura”, “elevação” (há quem sugira que o nome *brigantī descreve os próprios Alpes, fazendo de Brigantia a “deusa dos Alpes”), além de também “força”, “poder”. Otros termos indo-europeus relacionados (mas de fora do mundo céltico) estão o antigo nome do alto alemão Burgunt, bem como o sânscrito Bṛhatī (बृहती, “altiva”, um dos epítetos da deusa do amanhecer, Ushas). O medieval Glossário de Cormac (atribuído ao rei e bispo Cormac mac Cuilennáin, do século X) oferece uma etimologia diferente, baseada em Breo Saighead (“Flecha Flamejante”), mas hoje esta é vista principalmente como uma invenção medieval (ainda que se valha da forte conexão de Brighid com o fogo). No País de Gales, Santa Brígida (do qual falaremos adiante) é conhecida como Ffraid (após sofrer as mutações típicas da língua galesa, onde Braid se torna Ffraid), mas tal nome também significa “noiva” em galês, o que torna essa associação um tanto inconclusiva.
Existe uma teoria de que a palavra galesa para “rei” (brenin) seria derivada do termo hipotético “brigantinos (“consorte da deusa Briganti”), mas esta construção nasce principalmente a partir da imagem da rainha dos Brigantes britânicos, Cartismandua, que pôde se divorciar de seu marido e ainda manter a realeza da tribo, o que fez com que alguns estudiosos sugerissem que ela poderia ser vista como uma encarnação de Brigantia e que a realeza só seria obtida por aquele que com ela se casasse. Essa ligação com a Soberania pode se refletir nas tradições irlandesas, onde um dos muitos epítetos pelos quais Santa Brígida é conhecida é banfhlaith (“mulher soberana”), cuja autoridade estaria sobre os reis de Leinster, justamente a região onde estariam centrados os Brigantes da Irlanda. Obviamente, são apenas conjecturas, mas com evidências o suficiente para ao menos serem consideradas.
A Brighid Gaélica
Quando partimos para a Brighid gaélica, temos uma quantidade de material bem maior do que das suas possíveis contrapartes britânicas e continentais, ainda que as informações possam parecer contraditórias em alguns momentos. Ela é mencionada em diversos textos, tais como o Glossário de Cormac, a Segunda Batalha de Magh Tuiread, o Colóquio dos Dois Sábios e em algumas redações do Livro das Invasões da Irlanda. Bríghid surge principalmente como uma deidade padroeiras dos ofícios humanos, como a poesia, a metalurgia, a medicina, as artes e artesanatos, a pecuária e o gado. Além disso, ela também possui uma ligação com a primavera, principalmente através do festival Imbolc/Óimealc, celebrado no 1º de fevereiro (no hemisfério norte).
O Glossário de Cormac, uma fonte dos séculos IX-X, a descreve como a “deusa a quem os poetas adoravam” (a poesia era vista com grande reverência na cultura céltica, como bem atestam os contos sobre os bardos, satiristas e filidh) e cita que ela tinha duas irmãs: Brigid, a curandeira, e Brigid, a ferreira (o ofício do ferreiro também era visto com reverência, pelo seu poder de transmutação dos metais, sendo considerados quase como magos), sugerindo uma deidade de associação tríplice. Adicionalmente, ele reforça a amplidão do seu culto quando cita que “para todos os irlandeses havia uma deusa chamada Brigid”, também lembrando de seu “cuidado protetor” e chamando-a por “mulher de sabedoria”, além de lembrar de sua afiliação como filha do Dagda, o “Bom Deus” das tradições gaélicas. Há também uma consideração sobre a possibilidade de seu nome ser mais um título do que um nome pessoal, mas não encontramos essa possibilidade descrita em nenhum outro lugar. Muitas tentativas foram feitas de associar Brighid a Brigantia, e é possível apontar semelhanças a partir das deidades romanas aos quais a possível contraparte britânica foi comparada, principalmente as afinidades com a cura, sabedoria e ofícios de Minerva, e com a poesia e inspiração de Caelestis. Alguns associam a sua ligação com a forja à afinidade guerreira presente em Brigantia (a partir da associação com Minerva e Victoria), mas isso é apenas conjectura. Mas Brighid também possuía uma face guerreira, a Bríg Ambue, protetora dos lendários guerreiros Fianna. Além disso, ela também é associada a um tipo de encantamento/ maldição invocada para a proteção nos campos de batalha, as Bríocht Cáinte.
Na mitologia, ela é a filha do Dagda, o “Bom Deus” das Tuatha Dé Danann, que é portador do Caldeirão da Fartura e de um cajado que poderia trazer a morte a alguém com uma das pontas, e devolver a vida com a outra. Ela é irmã de Oéngus mac Ind-Óg (um deus associado ao amor, os sonhos e a juventude, que alguns comparam ao Mabon ap Modron galês, o Maponos gaulês e o Apollo grego) e de Bodb Dearg (o rei das Tuatha Dé Danann após terem sido banidas da Irlanda para as colinas dos Sìd). Não sabemos, contudo, quem seria a sua mãe (embora muitos imaginem que ela seja filha de Boand, assim como Oéngus, o seu irmão). Ela foi a consorte do rei meio-fomorian Bres mac Elatha, que subiu ao trono das Tuatha Dé Danann, e o casal teve como filho Ruadán, que tombou na Segunda Batalha de Magh Tuiread. Algumas versões conflitantes (como O Colóquio dos Dois Sábios, na redação do Livro de Leinster) sugerem que ela seja mãe dos três filhos de Tuireann também, Brian, Iuchar e Iucharba, que são referidos como os “Três Deuses de Danann” ou os “Três Deuses das Artes”, mas as evidências são muito escassas para afirmar com certeza que isso não foi apenas uma versão conflitante registrada pelos cronistas.
Bríghid tem também fortes associações com alguns tipos de animais, particularmente os de pecuária (o gado era fonte primária de riqueza na Irlanda antiga). É dito que ela possuía dois nobres bois chamados Fea e Men, cujos nomes serviram para nomear a planície de Feimhean. Outro animal associado a ela é o javali, pois é dito que ela possuía o rei dos javalis, o Torc Triath (que tem paralelos claros na mitologia galesa, o Twrch Trwyth, bem como nos mitos arthurianos de Geoffrey de Monmouth, onde seu nome é Porcus Troit). Todos os seus animais são associados ao Outro Mundo. O Livro das Invasóes da Irlanda cita que “com eles estavam e eram ouvidos os três gritos demoníacos que seguem a rapina da Irlanda, sibilo, pranto e lamentação”, uma reminiscência da tradição que diz que Brighid foi a primeira a emitir um grito de luto na Irlanda.
Há quem sugira que esse grito de luto a aproxima das Bean Sidhe, o que pode apontar para mais um aspecto tutelar da deusa, uma vez que ela, como Brigantia, provavelmente possui características de Deusa da Soberania (pois a figura das Bean Sidhe é muitas vezes associada à Morrighan). Entre os argumentos usados para reforçar essa teoria está o fato de ela ter sido esposa de Bréas, o rei meio-fomoriano que assumiu o trono das Tuatha Dé Danann (lembrando que os reis precisavam desposar a Soberania para serem considerados dignos) após Nuada perder seu braço. Muitas deusas com características de Soberania tem aspectos tríplices, como Bánba, Fótla e Ériu, ou as três Morrígna, e Brighid certamente tem as características necessárias para assumir tal papel, inclusive com um culto e reconhecimento que permaneceu inabalável por muito mais tempo na consciência e memória do povo irlandês do qualquer outra deidade, feminina ou masculina.
Atributos Divinos
Brighid é uma deidade elevada (como seu próprio nome sugere), de enorme importância para a tradição gaélica. Como Lugh, ela praticamente permeava todos os aspectos da sociedade, mas talvez com uma profundidade e importância ainda maior do que ele, uma vez que seu culto se recusou a morrer, precisando ser adaptado pelo cristianismo para que se tentasse esquecer a deusa. A própria assimilação que os romanos fazem das possíveis contrapartes de Brighid mostra o tamanho de sua relevância. Ela é equiparada a Minerva, que Júlio César, em sua Interpretatio Romana, inclui na lista de deidades mais cultuadas pelos gauleses. Minerva é uma deusa da guerra, da sabedoria e das artes, mas a própria descrição de César inclui também a afinidade com a cura, todos aspectos que também são facilmente relacionados a Brighid. A comparação com Victoria pode parecer menos familiar, afinal, poucos associam Brighid à guerra, mas não podemos esquecer que entre seus epítetos está Brighid Búadach, “Brighid Vitoriosa”; além disso, a existência da Bríg Ambue, relacionada aos Fianna e aos poemas encantatórios entoados antes das batalhas (os bríocht cáinte), nos lembra que tal aspecto não seria estranho a ela. E por último, a comparação com Caelestis sugere um aspecto celestial, elevado da deusa, de uma deidade que traz a inspiração à humanidade. Nenhum desses aspectos entra em contradição com Brighid.
Os vários locais que carregam seu nome evidenciam que ela não é apenas uma deidade tutelar, mas também com fortes características ligadas à Soberania, e não de apenas um de um ponto específico, mas de muitos lugares ao longo de toda a área céltica. Se confirmada a sua ligação com os Brigantes (da Irlanda, Grã-Bretanha, Península Ibérica e Gália), fica claro que ela não é tutelar apenas dos locais, mas de um povo (ou vários povos) que a tem como matrona divina, um povo que poderia se deslocar para diversos locais, dividir-se em diversas tribos, aculturar-se com outros povos, mas que permaneciam sendo o povo de Briganti. E talvez para eles ela também seria uma provedora da Soberania. A ligação com os rios mostra que ela também tem um aspecto nutridor, alimentando as tribos no seu caminho como diversas outras deusas célticas ligadas a rios.
Por mais que o Glossário de Cormac hoje seja visto como uma fonte potencialmente enviesada, ele ainda nos ajuda a encontrar associações e afinidades bastante coerentes sobre Brighid. Sua descrição como deidade tríplice, uma tríade de irmãs, ligadas especificamente à poesia, à metalurgia e à cura não apenas fortalece as associações anteriores, mas também as seguimenta, evidenciando que estas eram as artes de Bríghid por excelência. Mas o texto está longe de restringir Brighid a elas, uma vez que é dito que “entre todos os irlandeses havia uma deusa chamada Brigid”, e seu caráter de proteção e sabedoria também são destacados.
Há quem sugira que a sua ligação com o Dagda traga um caráter de fartura e fertilidade a Brighid, uma teoria que não é absurda, diante de seus vários aspectos. Assim como seu pai, Brighid é certamente ligada à vida, com suas afinidades de cura e primaveris, mas sua ligação com os keenings durante o episódio da morte de Ruadán pode indicar também uma afinidade com a morte (que o seu poderoso pai também possui), nem que seja pelo lamento pela sua partida e como psicopompo, guiando as almas com seu pranto. Ainda sobre sua possível afinidade com a fartura, devemos também lembrar da sua profunda ligação com a pecuária, que era a principal fonte de riqueza das tribos célticas, aqui representadas pelos touros Fea e Men. Mas não apenas a fartura dos animais domesticados, mas também dos animais que eram mais tipicamente associados à caça, aos jogos e disputas de nobreza e às iniciações dos guerreiros, como evidencia a sua posse do Torc Triath.
Quando olhamos na direção de Santa Brígida, encontramos uma quantidade ainda maior de afinidades. É claro que é preciso tomar algum cuidado, afinal, estamos falando da lenda de uma santa cristã, mas hoje poucos duvidam que essa mesma santa não tenha ao menos absorvido elementos do culto e da mitologia da deusa Brighid, com muitos acreditando que sua figura seria literalmente uma forma que igreja encontrou de se aproveitar do culto de uma deusa pagã que se recusava a morrer na Irlanda. Isso porque muitos elementos da mitologia e das crenças na santa parecem obviamente oriundas do passado pré-cristão. Por exemplo, a região que é mais prontamente associada a ela. Kildare é Cill Dara, a “Igreja/Templo/Cela do Carvalho”, e o carvalho é uma árvore com profundas associações pagãs dentro da tradição céltica, particularmente com o Dagda, pai de Brighid (além de ser também uma região associada aos Brigantes da Irlanda). Em Kildare, ela manteve um culto a uma chama sagrada junto a um grupo de freiras, que inclusive chegou a ser condenado por autoridades eclesiásticas em tempos posteriores; cultos a chamas eternas mantidos por sacerdotisas (muitas vezes virgens) fazem parte do cerne da tradição indo-europeia, como os cultos de Héstia e Vesta, e este fogo se tornaria essencial à figura e ao culto de Santa Brígida (o fogo da forja para os ferreiros; o fogo na lareira, evidenciando sua característica de cura, mas também de protetora da família; o fogo na cabeça, que inspira os poetas), e mesmo o atualmente contestado Glossário de Cormac oferece uma explicação para o nome da deusa Brighid ligada ao fogo: Breo-Saighead, “flecha flamejante” (embora essa etimologia seja desmentida hoje pelos linguistas, mostra que o autor medieval tinha ao menos alguma consciência da relação entre Brighid e o fogo). E se ela é associada ao fogo, também o é à água, as nascentes e poços sagrados, principalmente com características de cura, poços esses que recebiam oferendas desde tempos pré-cristãos e cuja prática foi absorvida pela igreja. Em uma observação apenas preliminar, encontramos associações de Santa Brígida com três elementos que podem retroceder ao passado pré-cristão: o carvalho, o fogo e a água.
A santa, contudo, nos sugere também uma gama muito maior de associações que, curiosamente, poucas delas entrariam em contradição com a deusa pagã. O mito da santa diz que Brígida só podia ser amamentada na infância por uma vaca branca de orelhas vermelhas, um típico sinal de um animal do Outro Mundo na tradição céltica. Entre os seus milagres está a criação de banquetes que poderiam prover um grande número de pessoas (algo que não é estranho a uma santa cristã, mas que também não seria estranho a uma deusa filha do Bom Deus, o portador do Caldeirão da Fartura). Outras das suas ligações com a fartura está nas lendas que falam sobre suas vacas abençoadas, capazes de suprir enormes quantidades de leite; e claro, na história em que ela teria transformado um lago em cerveja, algo que reflete um dos milagres cristãos mais conhecidos, mas que aqui adquire contornos evidentemente célticos. Brígida era conhecida por sua enorme generosidade, mas também por sua dedicação às artes e ofícios, tendo fundado uma escola (que, obviamente, incluía a arte da metalurgia), fortalecendo ainda mais a ligação entre deusa e santa. Alguns sugerem que a lenda de que seu manto poderia crescer a ponto de cobrir toda a província de Leinster é mais uma evidência do seu caráter como deusa tutelar e da Soberania da região. Brigida era, acima de tudo, uma protetora das mulheres, inclusive com diversos milagres que traziam justiça a mulheres injustiçadas, inclusive o polêmico feito de ter feito “desaparecer” a gravidez de uma noviça, o que faz com que alguns cogitem que a lenda se refira um processo abortivo (independente da opinião quanto, é algo que foge nitidamente à moral cristã). E que não se pense que Brigida era apenas benevolente, uma vez que maldições e pragas também surgem entre seus feitos, assim como ocorre com a deusa pagã.
A última associação especialmente relevante a ser feita aqui sobre Brighid está com o festival do Imbolc, celebrado em 1 de fevereiro no hemisfério norte. Novamente, esta festividade tem costumes muito mais relacionados à Santa Brígida do que à deusa pagã Brighid, mas o teor destes costumes é fortemente pagão, o que nos permite especular sobre a possibilidade de que eles (ou ao menos versões primitivas deles) já existissem no período pré-cristão. Esta festividade precede a primavera e o início da estação de trabalho para a maior parte das comunidades gaélicas, após o longo e escuro inverno. Sua celebração comemora o retorno da estação clara do ano, permitindo fazer uma clara associação de Brighid com a própria primavera. Um dos simbolismos mais presentes no Imbolc é a lactação das ovelhas, algo que, como já vimos, evidenciaria alguma afinidade com Brighid. Outra das crenças comumentes associadas ao Imbolc é a purificação e lavação ritualística, algo que não seria difícil de relacionar com uma deusa ligada aos poços sagrados (com o tempo, essa prática evoluiu para limpezas de primavera em geral).
Diversos dos costumes de Imbolc parecem ter alguma ligação com o mundo pré-cristão. Dentre eles, o seu mais famoso símbolo, a cruz de Brighid, é especulado como tendo um simbolismo mais antigo do que o cristianismo, como um amuleto pagão de bênção e proteção pela primavera (essa teoria costuma ganhar mais força para aqueles que conhecem a sua versão de três pontas, em um formato semelhante a um triskle). Outra das tradições que parecem ter uma origem antiga são as procissões carregando as “bonecas de Brighid” (ou Brídeoga), celebrando a primavera e passando de casa em casa em celebração, invocando a sua proteção para a casa e o gado (e Brighid era uma protetora). Embora seja possível argumentar que essa prática se refira mais à santa do que a deusa, algumas variações locais eram feitas sem as bonecas, mas com uma garota assumindo o papel de Brighid, usando sua coroa, seu escudo e sua cruz, tornando-se quase uma representação viva da Brigantia dos tempos antigos. Essa era uma festividade com profundos simbolismos de renascimento, proteção e cura, aspectos facilmente relacionados à deusa pagã, bem como uma época propícia à divinação (como todos os festivais).
Brighid é a deusa do culto que se recusou a perecer entre o seu povo, e motivos para isso não faltam. Deusa protetora da comunidade e seus ofícios, da inspiração divina, da fartura, dos lares, famílias e da cura, mas que não se furta ao lado guerreiro ou fúnebre. Deusa tutelar de povos e de terras, de rios que enriqueciam as terras das tribos que a cultuavam, é uma senhora da Soberania por si só. Deusa do fogo (o elemento celeste), da água dos poços sagrados (a fonte da vida que flui do submundo) e do carvalho, a árvore sagrada que liga os Três Reinos. Deusa da primavera e da estação do renascimento, da metade luminosa do ano. De fato, não há sequer razões para se questionar a razão de o culto da Senhora das Três Chamas ter persistido tanto, mesmo após a chegada do cristianismo.